Imaginação e realidade 2

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Há um pensamento – ou um modo do pesamento – que está está intimamente associado às palavras. Um pensamento discursivo, digamos assim, uma capacidade de “por em palavras” tudo que é pensado em outros modos. Falei outro dia que a sensibilidade, a memória e a imaginação eram para Descartes modos do pensamento. Faltou acrescentar um quarto modo cartesiano mais difícil de “identificar”: o entendimento.

(Talvez uma outra hora eu devesse falar da importância que intuo de se ver essas “atividades” como modos do pensamento e não como faculdades. É um tema interessante de pesquisa, de qualquer maneira…)

É dificil conceber o entendimento como um modo, ao menos para mim, que não sou íntimo da matemática como Descartes. Os números parecem mais “puros” que as palavras, mas vamos supor que o entedimento esteja associado a esse modo do pensamento que “põe as coisas em palavras”.

O problema é que continua obscuro: o que é exatamente “por em palavras”? Se comparamos “por em palavras” com lembrar ou imaginar ou mesmo ver – onde está a semelhança? Eu tenho dificuldade em vê-la, mas não será por isso que vamos parar. Sigamos com mais cautela e deixando marcado que este trecho do caminho precisará de mais pavimento.

O que é “por em palavras”? Isso sempre me intrigou. Agora mesmo estava vendo “a camisa vermelha ao vento”. A quantidade de informação aí ultrapassa em muito o fenômeno daquela longínqua mancha aparentemente vermelho escura se movendo. Mesmo isso de juntar camisa e vermelho… Sei lá, por que não penso que é o vento que fica vermelho naquele ponto, que ele, por muitas dobras e voltas, ali se vire em vermelho vórtice? Sei lá…

Mas mesmo quando se trata dos outros modos, não é simples. O que diferencia lembrar e imaginar? Não parece ser muito mais um ato de vontade do que algo intrínseco, próprio do ato de lembrar ou imaginar que os destiga de fato? Mas aí introduzimos outro elemento: a vontade. Sim, a vontade – esse abismo.

É como se houvesse “duas instâncias”: a produção da idéia e a decisão sobre o que é a idéia. Um movimento em dois tempos: não posso separá-los, mas posso distingui-los.

(Um estado de loucura pode ser definido como um estado em que não se sabe onde colocar as ideias, se no plano do real, do hipotético, do acontecido).

Por outro lado, acho (o que até deve ser visto como heresia) um tanto inútil perder muito tempo em distinções e definições muito exatas se aparentemente o que o ocorre é esses modos estarem sempre presentes em qualquer idéia. No fundo, no fundo esses modos talvez falem mais da “direção no tempo” que esssas idéias tomam, do que propriamente de modos verdadeiramente distintos.

Então o pensamento (aqui entendido como “poder de produzir idéias”) seria um ato complexo que envolveria todos os modos.

* * *

Estava escrevendo isso quando por acaso me deparei com este poema de Borges, vejam que coincidência interessante. O pomea é do livro “O fazedor “, um dos meus preferidos de Borges.

O outro tigre

Penso em um tigre. A penumbra exalta
A vasta Biblioteca laboriosa
E parece afastar suas estantes;
Forte, inocente, ensangüentado e novo,
Ele irá por sua selva e sua manhã
E deixará seu rastro na lodosa
Margem de um rio cujo nome ignora
(Em seu mundo não há nomes nem passado,
E não há futuro, só um instante certo.)
E vencerá as bárbaras distâncias,
Farejará no enleado labirinto
Dos olores o olor da alvorada
E o olor deleitável do veado;
Entre as riscas do bambu decifro
Suas riscas e pressinto a ossatura
Sob essa pele esplêndida que vibra.
Inutilmente interpõem-se os convexos
Mares e os desertos do planeta;
Desta morada de um remoto porto
Da América do Sul, te sigo e sonho,
Oh, tigre das ribeiras do rio Ganges.

Corre a tarde em minha alma e pondero
Que o tigre vocativo de meu verso
É um tigre de símbolos e sombras,
Uma série de tropos literários
E de memórias da enciclopédia,
Não o tigre fatal, jóia nefasta
Que, sob o sol ou a diversa lua,
Vai cumprindo em Sumatra ou em Bengala
Sua rotina de amor, de ócio e de morte.
A esse tigre dos símbolos opus
O verdadeiro, o de sangue quente,
O que dizima uma tribo de búfalos
E hoje, 3 de agosto de 59,
Estende sobre o prado uma pausada
Sombra, mas só o fato de nomeá-lo
E de conjeturar sua circunstância
Torna-o ficção da arte e não criatura
Animada das que andam pela terra.

Procuraremos um terceiro tigre.
Como os outros, este será uma forma
De meu sonho, um sistema de palavras
Humanas, não o tigre vertebrado
Que, para além dessas mitologias,
Pisa a terra. Sei disso, mas algo
Me impõe esta aventura indefinida,
Insensata e antiga, e persevero
Em procurar pelo tempo da tarde
O outro tigre, o que não está no verso.

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