3 de abril de 2000
A cumplicidade das coisas

Quando alguém que você começa a gostar entra pela primeira vez na sua casa, todos os objetos se aprumam como se fossem tirar retrato. Alguns lamentam em silêncio que você os tenha deixado fora de seu lugar, como os quadros que há anos esperam ser pendurados na parede. O castiçal onde faltam flores tenta compensar a ausência delas refletindo timidamente os olhos que o contemplam. Quer chamar atenção e parece que se alonga ainda mais, súbita bailarina de cristal.

As poltronas reclamam impacientes que alguém as descubra, invejosas das almofadas que sorriem satisfeitas de ver e sentir o novo corpo que as aconchega entre os braços. "Como ela é? Como ela é?", pergunta o sofá à mesa ao lado. Mas esta permanece esguia e silenciosa como um porteiro de hotel, cheia de orgulho do que esconde em suas gavetas, pedaços de história que são poemas, cartões, fotos e pequenos objetos inúteis e puramente sentimentais que lá dentro se excitam ante a possibilidade de exibirem-se à tona do presente. "Um poema vale mais que qualquer fotografia". "Ora, cala boca, papelzinho. Veja como eu posso mostrá-lo bonito", responde aquela foto. E é preciso bater no tampo da mesa para evitar que esse burburinho sussurrante acabe por te fazer abrir as gavetas e espalhar pelo chão todas as peças desse quebra-cabeças que é a vida de cada um...

Mas é nas estantes que a excitação é maior e quase incontrolável.

Enquanto você recolhe um tanto envergonhado as roupas espalhadas pelo chão - que já iam ensaiando um papo íntimo do tipo: "Olha, eu conheço ele por dentro e posso dizer que..." - nas estantes os livros e cds se esforçam para sobressair suas lombadas. E vão compondo estranhas parcerias: Miles tenta nos convencer que combinado com Baudelaire seria infalível; Rubem Braga pede Tom Jobim; Billie quer Pessoa; Sinatra diz confiante "Deixa que eu resolvo" e Cartola, sussurra cúmplice: "Lê os teus poemas, seu bobo, enquanto eu canto...".

E assim, as lombadas movem-se como um teclado quase imperceptível que vai deixando no ar, mas só para quem sabe ouvir, a melodia de " Ruby My Dear ", tocada lenta e apaixonadamente pelo fantasma sempre presente de Thelonius Monk...

E então... Então é uma rosa que brota de um coração que já se pensava de pedra; é uma, só uma, lágrima furtiva que semeia tuas coxas; são olhos que encontram um súbito espelho; são mãos de veludo sobre uma pele de cetim.

E então, então a casa inteira silencia, atenta e reverente, em uma prece muda, querendo parar o mundo, o tempo, a exaustiva geografia das cidades, para instalar de novo o paraíso que se vislumbra quando o amor, o amor, o amor - o amor -
 entra pela primeira vez em sua casa.