5 de junho de 2000
Dois poemas

Versos íntimos

Vês? Ninguém reparou no lento naufrágio
Do que ainda ontem chamavas de amor
Somente a solidão - este pendor -
Te multiplicava nos espelhos por contágio.

Acostuma-te à indiferença e à falta de valor.
Este mundo é uma espécie de estágio
Onde aquele que reclama ser mais frágil
Quer apenas barganhar com a própria dor.

Toma um fósforo. Acende essa parada.
O beijo, amigo, é véspera de nada.
A mão que afaga é mesma que te acena adeus.

E se outra boca pede os beijos teus
Ou se outra mão te afaga,
Aproveita, que no amor não há outra paga.

 

Apontamentos de anatomia fantástica

O homem é feito de corpo, olhos e alma.
Olhos são toda a pele que o recobre em modos diversos de sentir.
Mas tudo nessa pele é ver e é também o que dele, homem, se mostra.
O corpo e a alma, ao contrário, não são visíveis.

Sabemos que estão lá, no fundo, urdindo em segredo o que em parte nos olhos se mostra.
Mas não se dão a ver - nem o corpo, nem a alma.
E onde começa um e acaba o outro, não sabemos.

Do corpo, nos ensina a morte, a doença, a mutilação.
Da alma, sequer sabemos como chegamos a deduzi-la da dor, da alegria e do êxtase.

Mas é tamanho o fervor com que nela acreditamos, que é certo que esteja lá, tão secreta quanto o coração, as vísceras e tudo mais que nunca chegamos a ver do que cremos ser o corpo.