11 de setembro de 2000
Hamlet à brasileira

"Eu vejo a injustiça, mas não creio na vingança. Eu vejo a dor, mas não creio no sofrimento. O não-ser é apenas um dos muitos modos transitórios do ser. Através de mim - sim, através, de mim e de cada um - algo é. Deus? Não sei... A vida, simplesmente...

Cada um é a gota ínfima e essencial do que assim, na sucessão incessante, sempre é, zombando das palavras. É como a célula para o corpo: em cada célula o corpo todo - e, de quebra, a humanidade inteira, diz a Genética. Mas o que poderia ser o corpo para essa célula, se ela o pensasse, senão a idéia da totalidade indizível? Pois o que é isso - "corpo" - senão a soma de células infinitas, incontáveis - corpo que, por sua vez, abriga este outro isto que aparentemente move a mão que escreve estas linhas quase anacrônicas porque manuscritas no silêncio da noite fria..."

Estava tentando imaginar um Hamlet moderno... É um forma - como o soneto... "Faz um Hamlet aí...", dá até pra se dizer. Simples: coloque um sujeito se interrogando em voz alta se vale mesmo a pena continuar vivendo, mexa bem os fonemas para que tudo soe intenso e você já começa a ter um...
A diferença entre um Hamlet moderno e o verdadeiro é o tom. Ele já não poderia mais colocar as coisas como se o suicídio fosse mesmo a única questão importante - na citadíssima frase de Camus (certamente porque é a frase que abre o livro...).

De que adianta matar-se se a vida segue? Certamente não é o temor da morte que nos impede. "Cadáveres adiados que procriam", somos todos o "Esteves sem metafísica" - a questão da "vida após a morte", da "salvação da alma" não é mais A Questão. O crediário é a questão: o amanhã é um número.

O que eu quero dizer é que o sujeito não se mata simplesmente porque a vida é mais forte. E quanto piores as condições, mais fortemente ele se agarra a ela. O problema é o que fazer da vida. Eis a questão...
(O interessante, portanto, desse esvaziamento intelectual a que as pessoas estão sendo submetidas é que torna possível observar o homem em seu primarismo pré-cultural, ver o homem como o macaco do homem.Mas isso é tema pra outra crônica...)

Eu tenho essa mania de imaginar novos Hamlet - e coisas assim... Reenscrever textos, retomar temas e tramas conhecidas não é só um modismo: a arte é um diálogo tumultuado com a tradição (lembrei, por exemplo, que o primeiro quadro cubista, Madermoiselles d'Avingnon, é um nu "tradicionalíssimo...).

Em outro Hamlet que escrevi, ele é um bêbado para quem a questão se resume em beber ou não beber - e se algo de podre há no reino, é o seu fígado.

"Beber... Sonhar... Talvez dormir...

Enfim, que diferença faz _ beber ou não beber _ se Deus não existir? E mesmo que ele exista _ ou não exista _ seja como for e até por isso mesmo - a dor será sempre isto: perversa ilusão, gozo inverso de sentidos exaustos do comum...

Falsa dor _ e no entanto, mais genuína do que o amor, porque incomunicável... Mas, falsa. Falsa sensação que substitui o vazio pela falta _ a irremediável nostalgia líquida do útero _ que só na morte encontrará termo.

Mas _ e se nem na morte? Esse o temor que me agarra à vida: o temor de tornar eterno não o sofrimento, mas a falta...

Beber... Sonhar... Talvez dormir... Morrer e talvez acordar..."

Aqui a intenção é parodiar o texto, a intensidade dele - mas com pinceladas de psicanálise, claro: nossos fantasmas são outros.