30 de outubro de 2000
Era uma vez... (2)

Na semana passada comecei a contar a história da menina que não sabia dizer eu te amo. Para quem não leu, faço um resumo: era uma vez uma menina que não sabia dizer eu te amo. Bem que uma vez ela tentou, mas lhe soou tão falso, como se o ato de dizer desmentisse o que pensava sentir, que nunca mais repetiu a frase. E assim, ela cresceu, casou, teve filhos e amantes. Mas a menina que não sabia dizer eu te amo continuou morando nas sombras de sua alma.

E sua vida corria comum, "fútil, cotidiana e tributável", sem que ela sequer se desse conta da falta que dizer eu te amo lhe fazia. Mas de repente, a menina que não sabia dizer eu te amo foi tomada por um pânico crônico da Lua. E se o Sol já não fazia quase parte da vida que levava em salões de luz fria e ar refrigerado, esse medo acabou fazendo dela uma reclusa. E assim foi passando o tempo...

Engana-se o leitor se pensa que o escritor tem o domínio absoluto sobre a alma de suas personagens. Mais fácil é lidar com gente de verdade do que com esses seres ambíguos, cuja substância não desconfiamos sequer em que consiste. Restos de fantasmas, almas futuras: de quê serão feitos os personagens?

Difícil, muito difícil, portanto, saber que secreta alquimia ocorreu na menina, mas uma noite ela despertou de repente no meio do seu sono que costumava ser breve e sem imagens e ficou quieta na escuridão, apenas ouvindo o que lhe parecia o som do mar batendo lá fora.

Mas não era o mar. Não podia ser o mar.... Ela morava numa grande cidade e o mar estava sabidamente longe... Quando descobriu que eram os carros passando velozes sobre o asfalto molhado de chuva, já era dela o mar que imaginara.

Levantou-se, puxou as cortinas e ficou vendo as gotas que escorriam pelo contorno de seu rosto refletido no vidro da janela. Quanto tempo passou assim, não sei, mas quando abriu a janela seu gesto foi espontâneo e solene. Debruçou-se no parapeito e deixou que a chuva a envolvesse com seu manto úmido.

Ficou olhando o céu, igual e sem estrelas. Fixou-se em um ponto mais brilhante que foi aos poucos se abrindo, se abrindo... Era a Lua! Era a lua que, suave e firme, furava as nuvens com a sua luz e vinha reinar soberana sobre a noite vazia de estrelas. Era a lua, tão íntima, tão sua àquela hora... Aos poucos, sem que ela se desse conta, a chuva passara - mas ainda lhe escorria dos cabelos pelo corpo todo em longas linhas de arrepio.

Quando enfim a lua sumiu por detrás dos morros, o horizonte já se desfazia em rosa-azul-lilaz: amanhecia. O cheiro primordial do pão, que escapava da chaminé de uma padaria próxima, impreganava o ar. A menina - a menina, sim - vestiu seu biquini e foi para a praia, porque sentia no corpo a urgência do mar.