6 de novembro de 2000
Brazil com z

Flamengo e Vasco jogaram numa sexta-feira, 25 de outubro, às nove e quarenta da noite, no Maracanã, com transmissão ao vivo pelo sistema pay -per-view. Dez dias depois é óbvio que eu não vou falar da goleada histórica de quatro a zero que o Flamengo impôs ao Vasco, no primeiro clássico do Zagallo no comando da equipe rubro-negra. Não que uma goleada dessas não seja motivo de crônica.

Pelo contrário, foi um jogo que ficará para sempre gravado na alma dos torcedores. Os flamenguistas, intimamente elevados à provisória eternidade de uma façanha que poderá ser lembrada pelo resto de suas vidas nos momentos de aflição futebolística. Os vascaínos, a carregar no peito a imponderável amargura daqueles quatro gols a clamar por uma goleada igual que os redima.

Durante anos, cada confronto entre os dois times estará marcado pela expectativa da revanche vascaína e não haverá vitória sobre o Flamengo realmente completa enquanto a goleada não for devolvida. Durante anos, a alma rubro-negra se deixará embalar docemente à sombra dessa vitória e os cruzmaltinos padecerão a sede de vingança sob o sol do meio-dia do rancor.

Exagero na linguagem para ver se consigo expressar o sentido épico que o futebol alcança no Brasil. Épico? Mitológico. O brasileiro assiste a mais reles pelada do Aterro imbuído de um fervor transcendente e corre pelas quatro linhas reais ou imaginárias de qualquer campo com a seriedade dos mártires.

Eu arriscaria mesmo dizer que só no futebol o brasileiro consegue ser sério, porque só ali, seja na condição de torcedor ou jogador, cinco séculos de exploração e submissão são momentaneamente esquecidos e ultrapassados e toda sua nobreza se expõe, magnífica. Só o futebol consegue realizar a façanha de revelar em todo o seu explendor o íntimo crioulo que existe dentro de cada brasileiro: no futebol, todo brasileiro é Pelé - ainda que não o saiba, ainda que se limite a distribuir botinadas e chutões à esmo. Só no futebol ele é sério, eu dizia, porque a história do futebol é o nosso único bem verdadeiramente comum, a nossa memória mais viva e ancestral.

Exagero na linguagem também para ressaltar o absurdo a que chegamos. Primeiro, desde os tempos em que Abel e Caim jogavam gol a gol, Vasco e Flamengo é jogo para domingo impontualmente às cinco da tarde, no Maracanã. E olha que, ainda assim, quase 70 mil almas sonâmbulas lotaram o templo em reverência ao clássico. Ignoraram heróica e generosamente a estupidez do horário - sexta-feira, nove quarenta da noite! - escolhido apenas para não atrapalhar a audiência da programação da Globo.

Eis aí, o primeiro absurdo: o Maracanã é público, os clubes e jogadores se mantêm às custas do torcedor, mas a imagem do espetáculo pertence ao Sistema Globo - que não satisfeito em, sabe-se lá por que meios (mas não é difícil imaginar...), comprar a exclusividade sobre um bem que é público, ainda se dá ao luxo de determinar seu horário, à revelia dos interesses do torcedor.

Chegamos então ao segundo absurdo - e o leitor decida qual o mais cruel: dona da imagem, a Globo resolve vendê-la pelo sistema pay-per-view. O mais popular de todos os esportes, a única religião de fato ecumênica no Brasil, tem um de seus maiores clássicos transmitida pelo sistema pay-per-view. O genuíno torcedor do Flamengo ou do Vasco, digo, o típico torcedor, nem sabe traduzir essa expressão. E foi exatamente esse torcedor que em plena era da globalização, de repente se viu lançado aos tempos do radinho de pilha!

Essa a verdade dura, terrível: a globalização à brasileira deu a uns o pay-per-view e a outros trouxe de volta o radinho de pilha.

Enquanto a classe média cercada de grades assistia o jogo em casa na tv de 29 polegadas comprada à prestação, a imensa canalhada que carrega este país nas costas, colava um radinho de pilha no ouvido e sonhava o jogo com sua imaginação inesgotável e comovente. Quem saísse à rua aquela hora poderia pensar que entrava em um romance de Saramago: os torcedores pareciam uma multidão de cegos, os olhos perdidos no vazio brilhando em transe, o rosto atravessado de rictos e risos súbitos. Uma multidão de cegos videntes em êxtase mediúnico - no que poderia parecer uma vasta e imensa sessão espírita. Mas a verdade era outra: o brasileiro mais pobre tinha voltado ao tempos do radinho de pilha...