2 de abril de 2001
O menino que queria voar

Babu já nasceu querendo voar. Quando os outros meninos ainda nem sabiam o que dizer quando lhes perguntavam o que seriam quando crescesssem, Babu já respondia que ia ser piloto de avião. Depois, quando cada um aprendeu a dizer que queria ser médico, engenheiro, advogado, jogador de futebol, Babu insistia, irredutível: "Eu vou ser piloto de avião".

Aviso que o pouco que sei da história de Babu é de ouvir contar. Por isso não me custa imaginar Babu, bem menino, já sabendo fazer elaboradíssimas gaivotas que lançava das janelas de casa para vê-las volutear ao sabor do vento e das dobras caprichosas do papel... Ou, um pouquinho mais velho, montando essas miniaturas de avião que passaram a ser o seu presente mais cobiçado. Imagino que Babu soubesse de cor a história de cada avião e não se limitasse apenas a montá-los mas também os pintasse com a atenção e a delicadeza que a tarefa exigia.

Naquela idade em que a gente se afeiçoa por coisas, bichos e lugares, naquela idade em que generosamente doamos humanidade a tudo que nos cerca, ainda imbuídos desse sentimento de que tudo é vida, a mesma vida que nos anima, imagino que os aviões fossem os melhores amigos de Babu e que ele a muito custo se separasse deles para cumprir suas obrigações de menino de boa família. Tenho mesmo a íntima certeza que não foram poucas as noites em que, depois que todos dormiam, Babu se levantava da cama e passava horas contemplando em silêncio seus aviões alinhados na estante, o coração palpitando de alegria e orgulho.

Pode não ter sido bem assim, já disse que não conheci Babu e mais invento do que conto a história do menino que queria voar. Mas é quase certo que antes disso, durante os anos de sua infância, Babu acumulou muitas horas de vôo em sua cama, tendo por companheiro seu fiel travesseiro e as nuvens e estrelas de sua imaginação. Se terão sido vôos guerreiros em esquadrilhas de combate ou solitários vôos transoceânicos, isso não ficou registrado nos anais da aviação imaginária, nem, que eu saiba, em diários de bordo. Tudo isso ficou para sempre guardado na caixa preta de seu coração.

De certo mesmo o que se pode dizer é que, por força de sua obstinação, Babu vivia nas nuvens. E se os aviões eram seus amigos, os pássaros eram seus irmãos. Eu quase posso vê-lo na janela acompanhando o elegante planar das gaivotas em direção ao mar - e não há inveja em seus olhos, mas fraterna admiração. Como também é fácil imaginar Babu já mais velho estudando os ventos, a anotomia dos pássaros, a mecânica dos homens e dos céus, encantado com os nomes redondos das nuvens - cumulus, nimbus, cirrus, estratus - e o modo como eles se combinam em substantivos compostos que fazem das nuvens complexos animais celestes.

Babu só se descuidou do peso. Todo menino é guloso e Babu tinha uma tendência natural para engordar. Quando viu, já não cabia na cabine de um avião. Se chegou a ser motivo de chacota eu não sei, mas não se deu por vencido e, enquanto avançava nos estudos da aviação, tratou de perder peso e regular sua gula. Enfim, quando aquele que queria ser engenheiro acabou advogado, e o que queria ser advogado virara empresário e o que era pra ser médico deu em vagabundo, Babu já perdera 25 kilos e estava, segundo os rigorosos critérios dos homens, apto a voar.

Imagine você, leitor, a felicidade de Babu ao ganhar seu primeiro brevê! Imagine e tome emprestado essa alegria. Deixe que ela o conduza junto com Babu em um vôo imaginário pelas praias do Rio em um desses dias luminosos do veranico que começa a se instalar - e que a muito custo chamamos de outono. Vá com ele bem alto e goze um pouco da alegria solitária de ser piloto. Porque ser piloto é umas formas mais nobres da solidão. Guarde essa emoção e mais tarde, quando for dormir, dê a ela a forma de uma oração.

Porque nossa história acaba de um modo triste.

Foi assim: Babu, reluzindo na felicidade de seus 21 anos, arranjou o mais poético de todos os empregos cariocas: foi ser piloto de um desses teco-tecos que cruzam as praias arrastando uma faixa de propaganda atrás de si. Certamente Babu sonhava com mais e talvez nem se desse conta da poesia de sua função. Mas era feliz porque voava, anjo quase involuntário de nossos dias de sol.
Pois bem: no sábado, 24 de março, depois de uma manobra ousada, o teco-teco de Babu se espatifou no chão. E o menino que só queria voar foi continuar seu destino de ser anjo no céu.