2 de julho de 2001
O cidadão perplexo

Estava começando a escrever sobre o fundo de pensão bilionário dos funcionários do Banco Central quando leio que Jack Lemmon morreu... Na minha mitologia pessoal do cinema, Jack Lemmon é a versão americana da mesma idéia que Marcello Mastroianni encarnava na Europa. Mal comparando, é como dizer Vênus ou Afrodite, Júpiter ou Zeus. Os dois irradiam o amor e a perplexidade que dão o título geral destas crônicas. Leio que Ettore Scola teve a sensibilidade de juntá-los em um filme, Macaroni, que não vi. Vou procurar em vídeo.

Grande Jack Lemmon... A gente vê brilhar nos olhos dele uma paixão obstinada em seguir em frente a despeito de todo ceticismo melancólico e quase resignado que também fulgura lá no fundo. Ele vai, ainda assim, contra todos os presságios - como o azarão que nem por isso deixa de correr o páreo. "Eppur se muove", "Mas que se move, se move...", como diz-se ter sussurrado Galileu para seus botões depois de condenado por dizer que era Terra que girava e não o sol...

Jack - e Marcello, eu, você, e todos nós que enxergamos alguma identidade nesse olhar - encarna o homem comum paralisado por uma suposta consciência difusa dos fatos que quase o convence da inutilidade de todo gesto, mas que segue obstinadamente apostando no azarão, insistindo no mesmo jogo, na esperança da grande tacada libertadora.

Meu Jack Lemmon preferido é o de Se meu Apartamento Falasse, The Apartament, de Billy Wilder. Não sei se já disse aqui, mas não canso de repetir: se é pra escolher, Billy Wilder é o meu maior diretor de cinema de todos os tempos. Nenhum diretor transitou tanto pelos gêneros como ele - e em cada um produziu senão um clássico, ao menos um cult. Na lista dos dez mais, Wilder implaca pelo menos um, Crepúsculo dos Deuses, Sunset Boulevard. Mas duas de suas comédias nova-iorquinas, O Pecado Mora ao Lado, Seven Years Itch, e Se Meu Apartamento Falasse também poderiam constar...

Em The Apartament, Jack faz par com Shirley MacLaine linda, encantadora, surpreendente. O resultado é magistral. A história do amor acidental do auxiliar de escritório "banana" pela assessorista sonhadora é um conto de fadas para adultos. Como nas boas histórias do ramo, é exemplar o modo como o amor desperta os dois para vida e os redime e os enche da coragem que pensavam não ter.

Pensando bem, até dá pra juntar os dois assuntos, o homem comum apalermado pela opressão de uma sociedade que supostamente deveria prover-lhe a felicidade e o fundo de pensão do Banco Central que eu vejo justamente como uma das expressões desse monstro.

Ora, pergunta o cidadão perplexo, por que os funcionários do Banco Central têm um fundo de pensão de quase quatro bilhões de reais se eles, além de poucos, são tão funcionários públicos quanto qualquer barnabé? Banco do Brasil, Caixa, Furnas são empresas. Estatais, mas empresas. O Banco Central, até onde eu sei, é só uma repartição pública, um orgão burocrático do Ministério da Economia.

Mais: por que os fucionários do Banco Central têm um fundo de pensão bilionário e, por exemplo, a polícia não tem, se polícia, médico e professor - ou justiça, saúde e educação - é tudo que o cidadão espera do Estado e portanto consentiria de bom grado em dar a esses servidores remuneração e garantia adequadas?

E ainda mais, quando é óbvio que fundo de pensão, aumento de salário e a contrapartida de uma corregedoria eficaz seriam instrumentos suficientes para produzir a tão falada reforma da polícia? Dar um salário razoável e a certeza de aposentadoria decente ou pensão digna para viúva e filhos em caso de morte ou invalidez é valorizar o policial correto. E promover a justiça.

Fala-se em segurança, segurança, segurança - quando segurança é só o efeito, algo que se quer alcançar. O problema é: justiça. Quando a justiça for eficaz haverá segurança. É justo esse fundo de pensão, eu pergunto - e só eu, pelo visto. Pois nos jornais o fundo é fat consumado. Enfim é a tal "suposta consciência difusa" que nos leva a crer que "não há nada a fazer": os fatos nos são mostrados, mas a verdade não é dita.