3 de setembro de 2001
Hoje

Escrevo ainda na cama, com o dia transbordando de luz por todas as janelas. Mas não me iludo: fiapos de nuvens pincelam o céu e ainda é capaz de nublar e até chover. Gosto de acordar assim, junto com o dia, o silêncio se desfiando aos poucos com a luz a tecer de ruídos o Mundo, isso que é matéria de jornal e depois história, ilusão de nomes e números. Enfim, eis aí, Antonio, o Mundo, de novo novo, igual a tantos, mas sempre aberto ao inesperado e ao milagre.

Hoje, em toda parte, muitos irão sair para comprar cigarros e nunca mais voltar. Outros irão morrer de repente como passarinhos ou abatidos com desprezo feito porcos. Alguns, endividados até o pescoço ou já conformados com a miséria, se tornarão milionários com um bilhete de loteria, uma aposta na Loto ou na Sena. Haverá aqueles, suprema sorte, que hoje conhecerão o amor de suas vidas e serão felizes para sempre. Mas também haverá outros para quem a solidão se tornará definitivamente insuportável e do alto de um prédio ou entre os azulejos encardidos de um quitinete suburbano se entregarão ao abismo em busca de paz.

Hoje - que tanto pode ser segunda, terça, domingo ou qualquer dia, dependendo de quando olhos humanos venham pousar sobre este texto - hoje, como todos os dias, há de ser fim e princípio, gênesis e apocalipse para milhões de seres em todo mundo. Ou, o que é mais certo, hoje será só mais um dia recheado de grandes esperanças e ressentimentos, pequenos êxtases e frustrações, epifanias e vazios que nunca entenderemos de todo - e se viéssemos a entender não haveriam palavras que dessem conta. Só mais um dia - a merecer esta crônica preguiçosa que começou tão cheia de luz e agora ameaça tornar-se sombria, como a manhã indecisa entre o sol e as nuvens.

À custo, digo não à tentação de anotar versos alheios que me ocorrem - de Drummond, de Pessoa, de Garcia Lorca, de Mário Faustino, de Rubem Braga - mais para ir ganhando as linhas que me faltam até completar a crônica do que pelo honesto impulso de partilhar com você, leitor, pequenas maravilhas que são como polidíssimas lentes que nos dão a ver as entrelinhas deste texto, tão feroz e terno, tão surpreendente e vulgar, que é a vida. Não que você não o mereça ou devesse eu ser 100% honesto sempre. Não, nem uma coisa nem outra. Honestidade e mérito já não são mercadorias que andem por aí sobrando a ponto de podermos usá-las assim, como critério para medir nossos atos e almas. Não, a atualidade exige complacência.

Mas como resistir a colocar em letras estes fonemas que me ressoam na cabeça, nesta cabeça oca, feito mantras? "He visto que las cosas quando buscan su curso encontran su vacio". Ou "Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo."

Fico pensando o quanto não ganharíamos todos se, em vez de servi-los com este texto tosco e vacilante como o dia - que de novo sorri, luminoso, enchendo a casa de sombras seguras e exatas - eu reproduzisse aqui Tabacaria ou Os Ombros Suportam o Mundo. E até, se me desse a louca de assiná-los como meus... E daí? Mas, não. Presos ao compromisso da autoria - que os herdeiros exercem com mais rigor que o próprio poeta quando vivo - temos todos que aturar a relutância de Antonio Caetano em sair da cama e, o que é pior, sua vaidosa insistência em fazer disso tema de uma crônica. Aliás, era mesmo esse o tema desta crônica?

Mas cá entre nós, podia ser bem pior. Imagine se eu saísse escrevendo tudo que me vem na cabeça e começasse a falar dessa canalhada que povoa o noticiário, dessa gente que disputa entre si o direito de nos chupar até os ossos? Você pode dizer que eu estou maluco, mas tem horas, tem dias que eu simplesmente não creio que isso tudo exista, que isso aí seja o real. É preciso muita fé ou muita credulidade, não sei, é preciso ser santo, estúpido ou cúmplice para chamar isso aí, esse textinho de quinta protagonizado por umas personagens medíocres, de mundo, vida, realidade - escolha você o nome.

Nessa peça, esse garoto de 22 anos que seqüestrou o Sílvio Santos tem a dimensão trágica de um Hamlet, de um Rimbaud de subúrbio decidido a fazer, não ficção, mas realidade. "Presença de Anita" é fichinha e 500 mil é baratíssimo pelo retorno em publicidade que rendeu toda essa novela de primeiríssima qualidade - diria qualquer um desses marqueteiros sem caráter, Macunaímas sem gênio, que assessoram todos os políticos (claro, o semelhante atrai o semelhante, ensina a homeopatia).

Não, leitor... Melhor eu ficar quieto na cama... Não, não! O certo é eu me levantar de uma vez para trabalhar, para ganhar a vida com o suor do meu rosto - que, pela graça de Deus, nem me tem sido tirado muito...

Levanto, e na cozinha me deparo com o milagre: o abacaxi madurou durante a noite e agora sua rísipida presença é só perfume - um perfume ao mesmo tempo doce e viril como a lembrança que trago de meu pai...