8 de janeiro de 2001
Fim de ano

Fim de ano, é inevitável: o que faremos no ano que vem que mudará em definitivo nossas vidas? A máquina de calcular que também somos avalia em um relance a vida toda, quantifica faltas e excessos, compara ao que chamamos de "nossos sonhos" - as fantasias e ilusões que cultivamos mais como objeto de culpa e culto do que propriamente por objetivo ou meta - e chega a uma série de resoluções, todas supostamente práticas e racionais, sobre o que deveremos fazer já na primeira semana de janeiro para que finalmente nosso destino de cisne se realize em toda sua plenitude e o sucesso venha a ser nossa melhor vingança - frase que é uma variação da mesma síntese que se vê por aí escrita em pára-choques de caminhão ou plásticos de Kombi sob outras tantas formas e de quem o "a inveja é uma merda" é o avô saturnal, pois continua jovialmente a valer tanto como comentário triunfante e desdenhoso quanto de lamento final e irremediável por uma derrota suja e injusta.

"Que fazer?" E tramamos revoluções pessoais que são verdadeiras sagas épicas de enrubecer a múmia de Lênin, seja lá onde ela ande, visto que da última vez que soube dela faziam planos de tirá-la do mausoléu da Praça Vermelha que a abrigava. Pergunto - sem o menor sentido de ironia:quantas múmias há no mundo que são ainda objetos de culto?

(Não sei se é delírio meu, mas tenho a impressão de que há na Europa igrejas com corpos de santos embalsamados expostos à devoção pública, espetáculo cuja versão mais light, são esses seres e orgãos expostos em potes de geléia cheios de formol que se viam em museus de província e laboratórios escolares.)

Falo na primeira do plural não é por majestade, mas por covardia. Devia dizer eu e não nós: sei lá quem é o leitor que por acaso desliza os olhos nestas letras... Eu tramo o que de urgente e prático combina mais com "virada de milênio" - uma vez que sucessivas viradas de anos e de décadas não foram suficientes, para, por exemplo, limpar estas gavetas - de roupas velhas, de papéis velhos, de coisas que não funcionam mais ou que não uso mais - para falar apenas do que é material e resiste.

Eu às vezes me horrorizo com a quantidade de coisa que tenho e que um financista das antigas chamaria de capital empatado: livros e cds, sobretudo. Mas roupa velha também. E papelada: contas, recibos, contratos, formulários, extratos, manuais - mais recortes, cadernos, notas, revistas - e fotos, postais, cartões, bilhetes - e mais e mais, papéis, papeizinhos, papelões e supostas bulas papais...

Aí é que me fascina esse universo digital. Tudo isto cabe em dois ou três cds. E posso "pendurar" em algum site na Rede. Vuumm! Imediatamente oito prateleiras se esvaziam na minha casa e as paredes ficam quase nuas...
Junte um laptop, um celular, cartão de crédito, deposite tudo em um quarto de hotel três estrelas e temos aí o herói moderno, solitário e errante.

Radicalize o ambiente e imagine tudo que for decorativo como meros objetos virtuais, projeções holográficas de alta densidade, telas de cristal líquido de alta definição - tudo "ilusão verdadeira" como diria Descartes - objetos de luz. É possível - e provável. Objetos virtuais, imagens sensíveis - percebe como são contraditórios os termos dessas expressões? Um objeto não pode ser virtual, uma imagem não pode ser sensível...

Desci e meu porteiro conversava com o passarinho da vizinha que lhe responde ao assobio lá de uma janela do outro lado da rua. E a gente falava exatamente disso no começo, lembra? Dessa nossa natural, inata capacidade de diálogo com a vida, com o mundo ao redor - a ponto de condificá-lo em nomes e números que já nos levaram tão longe: os tais objetos virtuais, imagens sensíveis...

O porteiro conversava com o passarinho: em que momento da história dele ou da história do Homem ele estava, em que florestas e em que tempo de sua infância de menino - preto, índio, branco - de Homem? E será isso alma, inconsciente individual ou coletivo, memória genética? Sei lá...

A gente não sabe nada... A ciência pensava que a produção do hormônio do crescimento pela hipófise parasse por volta dos 18 anos. Daí em diante, seguiríamos vivendo com aquilo que acumuláramos nesse tempo. O envelhecimento não seria mais do que o fim das reservas do hormônio armazenado. Pesquisadores descobriram que a glândula não pára de produzir, mas de distribuir! Por quê? Ninguém sabe...

Imagine se aprendêssemos o segredo da distribuição? Poderíamos nos manter jovens eu quase diria para sempre se quisesse parecer bombástico, messiânico ou sedutor. A fonte da juventude era o que buscavam os alquimistas - a pedra filosofal.

Pra seguir a rima, li o Eco na Veja Digital... Idade Média/ Idade Mídia é um jogo de palavras velho, mas faz sentido... Pense nos milhões livros. Imagine os copistas de O Nome da Rosa como intelectuais desempregados que o Estado ou "os nossos patrocinadores..." (é mais provável) contrataram para digitalizar todo o conhecimento das bibliotecas do mundo a fora até finalmente construir A Biblioteca, eternamente sonhada e tentada tantas vezes, alegoria do Centro, do Logos mas que, reduzida à perversão por sua minúcia crescente, acabaria por criar uma cópia digital do mundo, como no conto de Borges, em que os mapas se tornam tão exatos que chegam a coincidir com os próprios objetos representados, mapas inúteis e redundantes em vez de caprichadas representações. Esse o risco, em qualquer tempo, Narciso que se afoga em sua própria imagem. <