11 de junho de 2001
Tudo tem seu dia

Tudo aos nossos olhos tem seu dia. Pessoas e paisagens, todas um dia se revelam em sua autenticidade luminosa e para sempre se tornam outras, nutridas desde então, e nutrindo a nós também, dessa luz que subitamente delas emana para os nossos olhos despertos.

São iluminações secretas, silenciosas, cotidianas, tão cotidianas que às vezes nem lhes damos valor, emaranhados que ainda estamos nessa ilusão que chamamos de história e confundimos com a vida. Em vez de nos apegarmos a esses instantes e fazê-los durar até se tornarem um estado de alma, logo devolvemos nossa atenção à repetitiva e monótona trama que chamamos "nossa vida"...

Enfim, essas brevíssimas iluminações apenas nos mostram o tempo que perdermos cegos por nossas íntimas e inúteis preocupações e como poderia ser o mundo se delas nos libertássemos. Suportaríamos? Tamanha é a força dessa luz que de tudo se irradia que aos nossos olhos de hoje pareceríamos loucos então.

Falo, falo e não chego ao ponto, ao tema desta crônica: a pista Cláudio Coutinho. Claro, eu já a conhecia. Do Catete à Urca, de bicicleta, é coisa de quinze minutos, vinte, no máximo. Eu só não tinha era o hábito de estacionar a bicicleta e passear à pé pela pista. Melhor seria chamá-la de trilha ou caminho: pista é uma palavra muito feia para um lugar tão bonito, que mais convida ao passeio do que à prática de esportes, como sugere o termo pista - ainda que seja muito bom correr lá...

Mas, enfim, trilha ou pista, não importa, ela se insinua sensual em suas curvas entre a mata, a montanha e o mar, como uma síntese do que é o Rio. Acho mesmo que não há lugar mais carioca. Se não me engano, foi ali que Estácio de Sá fundou a vila que daria origem à cidade - que, na verdade mesmo, foi fundada pelos franceses, já que antes deles aqui não havia nada...

O que talvez pouca gente saiba é que antes de se tornar o que é hoje, a Cláudio Coutinho era apenas o caminho por onde passava uma adutora de esgotos que vinha da estação do Mourisco e ia desaguar lá no fim da pista, direto do mar. Quando construíram o emissário submarino em Ipanema a adutora foi desativada e alguém teve a idéia brilhante - quem terá sido? - de transformar aquilo em caminho que, desde 76, está aberto ao público.

Essa brevíssima história do lugar nada diz da festa que é para os sentidos andar por lá com os olhos que contam... São cheiros, sons, cores que se oferecem à alma atenta. De um lado, a imensidão luminosa do mar aberto. Do outro, a sombra úmida de mata e rocha. Há o som do mar batendo nas pedras lá embaixo e o cantar dos pássaros nas árvores. Há a variedade da fauna: micos que vêm comer na nossa mão, coloridíssimas borboletas de todos os tamanhos e passarinhos de que nem sei o nome. E sobretudo o delicado conluio dos muitos aromas que a paisagem exala: o ar salino do mar, mais nítido nos dias de ressaca; o odor acre das pedras sob o sol; o cheiro humoso da terra e o variado perfume de plantas e flores...

Deve ter sido essa exuberância vegetal que seduziu o Percinoto, simpático e discreto guardião do lugar. Certamente não o único, mas um dos mais operosos. O conheci por acaso: vinha andando e reparei em um sujeito entre as moitas que, munido de uma serrinha de mão, cortava galhos de árvores.

O espírito da gente se revela é nessa primeira reação que a surpresa nos provoca. Por isso não me tenho em alta conta. Logo pensei mal do homem, mas nem por isso deixei de seguir em frente, ponderando que errado estava eu: algo de bom ele devia estar fazendo, assim tão às claras. Na volta, o encontrei de novo e não resisti. "O que é que você faz aqui?", perguntei, pronto para aceitar qualquer resposta.

Mas a que veio denotava sobretudo felicidade: "Eu? Uma porção de coisas...". E saiu me mostrando as sementeiras que cultiva para depois plantá-las pelo caminho. "Sabe aquelas árvores onde as pessoas alimentam os micos? Fui eu quem plantei...". A serra serve para aparar os ganhos mais baixos que nascem nos troncos e que, de outro modo, impediriam o bom desenvolvimento da árvore.

Há 25 anos, o lazer de Percinoto é cuidar do caminho, com discreta e obstinada paixão. Aliás, o nome disso é amor. Foi ele também quem me contou a história da pista. Grande figura o Percinoto... Certamente um homem feliz, uma alma boa. Percinoto, o guardião do caminho - um Derzu Uzala urbano e carioca.