15 de janeiro de 2001
A árvore do José Maria

Li que o homem que morreu assassinado pelos fogos do revéillon carioca, desde que chegara ao Rio, em dezembro, todos os dias caminhava até à Lagoa e subia no alto de uma árvore para rezar.  Pouco importa saber se foram mesmo todos os dias ou exatamente quando o ato começou a se repetir com a frequência de um rito íntimo e secreto. Basta-me a beleza absurda do gesto e a coincidência de ser dezembro, mês do Natal, e o nome dele José Maria.

Que árvore terá sido escolhida? E que oração rezava? O que pensava ou pedia o José Maria? - que, no dizer da filha, era um festeiro nato, homem de muita fala e variado riso, que chegou mesmo a largar a primeira mulher quando ela ingressou em uma dessas igrejas cujo o rígido cristianismo excluía justamente a festa e o riso tão caros a José...

Desconfio que talvez nem palavras houvessem na prece de José Maria - as idéias lhe vibrando na mente mais como acordes do que como fonemas - ele lá no alto concentrado em seu silêncio, os olhos fixos no rastro do sol poente rebrilhando no espelho da Lagoa a encher o peito de uma alegria que era nele a forma natural da esperança.

Deduzir do gesto que José Maria já pressentia a morte, como a ex-esposa religiosa e fatalista chegou a dizer, não me parece correto: não creio que fosse seu lugar no céu que José com os anjos acertava lá no alto de sua árvore. Mais certo é pensar que José nem soubesse bem porque fazia aquilo - subir numa árvore em plena cidade - e ninguém talvez tenha sequer se dado conta dele lá no alto. Quem saberia dizer qual era a árvore? Qual? A pergunta me obceca...

Pois tão surpreendente é o gesto de José que o mais provável é que não tenha sido José quem escolheu a árvore, mas a árvore quem escolheu José. Sim, eis aí a chave: foi a árvore quem convidou José Maria a subir. E José, em sua inocência de louco manso e festeiro, aceitou o convite e subiu. Subiu, não como cadáver adiado, mas como anjo por antecipação.

Talvez a cidade pudesse prestar a José uma justa homenagem se mandasse colocar junto à árvore uma placa dizendo mais ou menos que "era nesta árvore que José Maria Martins costumava subir nos seus primeiros dias no Rio - e os últimos de sua vida - antes de ser morto pela indiferença de seus semelhantes, no dia da virada do milênio". A placa poderia lembrar o nome dos que lhe negaram assistência e do prefeito Luis Paulo Conde, o Obelix de Ipanema, que rejeitado nas urnas, abandonara a cidade à ambição desmedida de empreiteiros e picaretas de todo tipo.

Para completar, o novo prefeito, em vez de aplaudir a nomeação de cachorros para o serviço público, poderia outorgar a José o título de Cidadão Carioca post mortem. Mais do que um pedido de desculpas, seria a celebração de alguém que, em menos de um mês no Rio, parece ter intuído de imediato toda a magia de ser carioca e embriagar-se pelos olhos de paisagens e gentes.

Lembrei agora de um conto de Borges em que ele cita um soldado bárbaro que participava do cerco à Roma mas que, encantado com a beleza inusitada da cidade, subitamente trocou de lado e combateu seus compatriotas até à vitória romana. Roma, acho, premiou-lhe com uma estátua. José Maria e sua árvore mereciam ao menos a plaquinha e o título.  Afinal, o prefeito César Maia tem fama de louco. Mas loucura sem grandeza é simples idiotia - está aí a tal secretária que não me deixa mentir...