22 de janeiro de 2001
Noites de verão

O sacrifício destes dias infernais é amplamente compensado por noites tão tenras - às vezes cálidas, outras tórridas como o dia, mas ainda assim tenras, densas de um azul que faz o céu quase tátil de tão límpido. O prazer que me dá ver da janela essas noites correrem sobre o silêncio habitual da cidade que dorme.

Eu, do alto de meu oitavo andar aberto para um horizonte ainda amplo, mas já fechado de prédios, em que o mar não é mais uma visão, mas um cheiro inconfundível que às vezes trescala no vazio, a anunciar que ele de si mesmo se enche, túrgido, enquanto a lua traça seu arco com exata elegância, até que outro cheiro, o cheiro primordial do pão, venha anunciar a aurora antes mesmo do alvoroço dos pássaros.

Falta-me outra janela. Mais do que isto: falta-me uma paisagem nova.

É no trato com as janelas que concluo que a imobilidade acaba por criar uma falsa intimidade que é mera indiferença. Quando a certeza de que não haverá mais surpresas cria exatamente isto - a ausência de surpresas.

Desejo, fé são nomes da vida, modos dela - ela, a incessante: a vida - que é também um nome, genérico, vago para isto que é a vida, uma força, um impulso para adiante a despeito de tudo, o tout droit, monsieur, que me disse a velhota francesa quando lhe perguntei onde era a lavanderia.

E ela me disse, je crois, monsieur que c'est lá, tout droit, tout droit - ela repetia, ressoando sábia, querendo dizer, sempre em frente, senhor, sempre em frente - e eu acrescento agora, porque assim é a vida - mas quando ela dizia toit droit, eu ouvia sempre à direita, sempre à direita e enfim, onde ela me mostrava a reta eu entendia o círculo. Mas logo saquei do esclarecedor equívoco o valor da atenção e o sentido da vida.

O que é a vida? Ora, a vida é a vida - e quando digo isto tenho certeza que você, leitor, sabe exatamente o que eu quero dizer. Você sabe. Sente. Não preciso dizer mais nada. E se alguém me disser tautológico, eu cito Clint Eastwood ou Wittgenstein, tanto faz - os dois concordariam que a vida é a vida - e não há mais nada a dizer.

Sempre em frente, senhor, sempre em frente!

A gente sabe. Nasce sabendo que há uma intimidade entre a gente e o mundo, uma autoconfiança dada capaz de nos fazer seguir quase no escuro, essa fé, esse desejo de que falava antes - isso que fazia com que os judeus não se atirassem contra as cercas eletrificadas dos campos de concentração que tanto surpreendia Primo Levi - e não há mesmo palavras para definir esse sentimento de natural entendimento, digamos assim, na falta das palavras, aquelas impossíveis.

Mas por que será então que acabamos descrendo dela, do que imediatamente nos diz o corpo em sua sabedoria de quem está imerso na vida, de quem é de fato os olhos da alma?

Não sei. Mas desconfio - e outra hora digo... Pois agora, mais do que todas as teses, me encanta ter sonhado com você que me vinha dar de presente a foto de uma flor - rosa ou lírio, não lembro - que você flagrara brotada do chão duro de um deserto ou estrada vazia. E, no verso da foto, vinha escrito: "Eis a imagem de desejo e fé que buscavas para encerrar tua crônica sobre a vida".