23 de abril de 2001
São Sifão

Tudo começou por causa do sifão do banheiro. Sifão é aquela peça - neste caso, quase inacessível - que fica sob o ralo das pias e lhes dá continuidade: o sifão, apesar do nome bíblico, faz o "trabalho sujo" do ralo. Pois, bendito seja São Sifão - graças a ele tenho agora uma casa nova.

Explico: quando o entupimento ameaçava tornar o banheiro uma versão doméstica de parque aquático, me vi obrigado a chamar o Josias, bombeiro, eletricista e faz-tudo da família. Ele é uma das heranças que meu pai nos legou, a mim e a minha mãe, uma "descoberta" sua. Josias - outro nome bíblico! - é um um sujeito grande, forte, de fala mansa e andar pesado que passa seus dias de casa em casa como um xamã urbano, restabelecendo a ordem nos lares. Na esquina de Almirante Tamandaré com Catete, todos o conhecem: é seu "escritório" e ali se pode deixar recados de socorro que logo serão atendidos.

Enfim, enquanto Josias revirava o banheiro para trocar o sifão, em cujo copo se acumulavam cabelos e uma massa escura de resíduos que lhe davam a aparência de útero alquímico onde se gestava um homúnculo involuntário, eu passava em revista a casa para fazer render ao máximo a visita de Josias.

Pois bem: findo o trabalho no banheiro, começou um corre-corre de pequenos serviços imprevistos na agenda sempre lotada de Josias: trocar os interruptores da sala e do banheiro (havia meses o banheiro funcionava à noite iluminado por um abajur de pé: muito chic, mas nada funcional), recolocar a prateleira de livros que desabara em um tempo também contado em meses (senão em anos), reencaixar cada uma das tomadas que saltavam das paredes, trocar a luz da cozinha que, também há séculos, só acendia depois de estratégicas pauladas que lhe dava com meu cajado de caminhada - e por aí vai...

A volta da prateleira e seu livros à parede fez surgir não só móveis - uma cadeira e uma pequena mesa que agora serve de aparador - como o próprio jardim de inverno: uma extensão da sala - como o traço que transforma um I em um L - onde, nesta época do ano, o sol resplandece a manhã toda. Com o espaço assim vazio era evidente que não se podia mais manter uma colcha velha no lugar da sempre adiada cortina. Corri a Parque dos Tecidos e durante dias fiquei "namorando" uma cortina baratinha, de algodão cru, que atendia perfeitamente às minhas necessidades. Enquanto me decidia - e embalado pelas bençãos de São Josias e São Sifão - tratei de esvaziar gavetas - toneladas de papéis, recibos, notas, canhotos, rascunhos, recortes, jornais e revistas foram para o lixo.

Outra coisa que descobri foi que os móveis estavam fora de lugar: bastou trocar, por exemplo, a bergère de lugar com a mesa de almoço - mesa de almoço agora: antes não passava de um depósito de papéis - para que ambas recuperassem sua verdadeira funcionalidade. E assim foi com a escrivanhinha, com a poltrona que se apertava no quarto e agora reina, soberana, no jardim de inverno, com a tv e a impressora...

Aproveitei também para realizar outra tarefa adiada desde o século passado, talvez apenas porque se trata quase de um ritual, tão definitivo quanto os antigos matrimônios: colocar quadros na parede! E não só os antigos, que se alinhavam sobre móveis ou no chão, mas também uns novos que fiz transformando porta-retratos baratos em quadros de parede apenas arrancando-lhes a perna de apoio e colocando no lugar uma presilha dourada que se encaixa ao prego da parede.

Nas Lojas Americanas comprei copos (copos, leitor, copos! Uma dúzia de copos!), um escorredor de pratos novo e uma fruteira de rodinhas que de tão graciosa dá vontade de levar para passear na rua como um animal de estimação.

No fim de tudo, decidi-me corajosamente pelas cortinas que o instalador oficial da loja, Adão - outro nome bíblico! - veio colocar para enfim restaurar nesta casa o Paraíso Perdido.

Pena que o espaço desta crônica, pelo visto, não é suficiente para abrigar todos os detalhes da minha casa nova... Passemos então à moral da história, como convém a um relato cheio de nomes bíblicos, conclusão de uma simplicidade comovente e terrível: a felicidade, o paraíso perdido, sempre estivera aqui, humamente possível, ao alcance das minhas mãos e da minha boa vontade. Foi só querer.