24 de setembro de 2001
Beleza Americana

Irracionalidade exuberante, racionalidade perversa: o tal mercado oscila, ciclotímico, maníaco-depressivo. Feliz, é exuberante; infeliz, é perverso. Dos dois modos ele ganha, indiferente à dor ou ao prazer que venha a produzir. Aquém do bem e do mal, imune ao tempo, o tal mercado não é sequer uma presença: como o terrorismo, ele não tem face, corpo, alma, pátria. Para ambos o mundo é um artifício contábil: bin Laden tornou-se ainda mais rico usando o tal mercado para apostar nos efeitos, para ele previsíveis, dos atentados. Agora, a dor está em alta: sobem as ações das empresas de armamento e segurança. O prazer está em baixa: caem as ações das empresas de lazer e turismo.

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O consumo, mais do que nunca, é um ato ideológico.

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Um padre prega, em uma missa na Basílica de Nossa Senhora da Aparecida, padroeira do Brasil, que os EUA estão colhendo o que plantaram. Saddan Hussein, Kadhafi, Paulo Coelho, dezenas de sociológos, antropólogos, jornalistas, populares, mulás, outros padres, pastores e rabinos repetiram a mesma taulogia agrícola - quem espera plantar batatas e colher amoras? - em variados tons de mal disfarçado ressentimento. "Olho por olho, dente por dente" é a lógica implícita. Sem querer - ou cinicamente escondendo sua satisfação - acabam por justificar uma retaliação violenta.

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Padres, mulás, rabinos, empresários, corretores, banqueiros, políticos, chefes de estado: a rede de bin Landen parece infindável.

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Deborah, que me acha um romântico incorrigível: "Saiu hoje um número desolador: o número de homicídios na cidade de S. Paulo (em um ano) é maior do que o número de vítimas do atentado americano. A guerra civil não declarada - sem data para terminar - é mais mortal que os ataques mais mortais do planeta. A tristeza brasileira é cotidiana, crônica,sem espetáculo - como acontece na maioria dos países do Terceiro Mundo. Uma mortandade que nem é chorada. De vez em quando temos rasgos de indignação, que nunca se transforma em ação, porque ninguém sabe o que fazer. Não temos um "culpado" para caçar."

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Meu medo: que tudo isto se transforme numa guerra entre ricos e pobres, entre a classe média e os miseráveis, entre fundamentalistas e liberais - em cada país, no mundo todo. A Terceira Guerra Mundial não será entre países, mas entre classes, entre estados e hordas.

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Agitação na fronteira do Paraguai, tensão com a Argentina, guerrilha na Colômbia: a rede de bin Landen é infindável.

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A Guerra Fria foi um embate filosófico. "Qual o princípio primeiro: a Liberdade ou a Igualdade?". Liberdade individual ou Igualdade coletiva - era essa a questão que opunha União Soviética e Estados Unidos. À custa de muita dor - muitos homens perderam sua vida e sua alma nessa luta - concluímos que é preciso um esforço coletivo para garantir a cada homem a consciência de que ele é Livre, de que ele é único. Só assim ele pode reconhcer o Outro como Igual. Se não for assim, ninguém pode nos matar por causa de um tênis, um relógio, uns míseros trocados. As ruas estão cheias de ninguém. Nossa segurança é meramente retórica: ninguém pode nos matar.

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A América representa a Liberdade. A Liberdade venceu. Cabe à América promover a Igualdade. E não a guerra. Não há guerra limpa: quente ou fria, ela é sempre suja. Só o terror quer a guerra. É preciso muito cuidado: a lista de cúmplices de bin Laden é infindável.

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Deixei para assistir Beleza Americana na hora certa. A epifania negativa das armas de fogo massacrando a emergência de uma consciência planetária americana. É Bush assassinando Cliton - talvez nossa última utopia de ex-quase-hippies quarentões.

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É a América que está em risco, não o Afeganistão. Se o mundo acabar, será o nosso mundo, não o deles.

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Quarenta bilhões de dólares seria um mini-Plano Marshall para incentivar a costrução de um estado palestino. São dez mil dólares para cada palestino. A Pax Americana deveria ser a paz do capital, da abundância industrial e não a paz da morte. Mas a rede de cúmplices de bin Landen é infindável.

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Um estadista teria convocado uma reunião de emergência com Sharon e Arafat e arrancado um retorno às bases de negociação anteriores ao fatídico passeio de Sharon à Esplanada das Mesquitas. Não seria o caso de romper com Israel ou sequer imaginar desarmá-lo, mas de dar uma chance aos palestinos de escolher a paz.

Ao assumir a tutela do estado palestino, os EUA estariam, aí sim, em condições de organizar uma frente panislâmica para combater o terror. Pois o que há - e esse é o verdadeiro risco que só agora estamos nos dando conta - é um embate no interior do próprio Islã.

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Na verdade, neste momento, fundamentalistas e liberais, fascistas e democratas se enfrentam em todo mundo, dentro de cada país - no fundo de cada alma. Deus abençoe a América: é hora de escolher entre ser juiz e ser carrasco. Entre a brutalidade e a justiça. E a rede de bin Landen é infindável.