27 de agosto de 2001
Meu pai

Andar por essas ruas antigas do Centro da cidade sempre me lembra meu pai. Ele sabia de cor o nome e a ordem de todas as ruas desde o Cosme Velho até lá pelos lados da Rodoviária. Dos outros bairros também conhecia tudo ou quase tudo - o homem era um Guia Rex ambulante.

Isso décadas depois de ter largado o trabalho de vendedor da cervejaria de onde era sócio e que lhe exigia cobrir extensas "praças" a cada dia da semana, de bar em bar, conversando e anotando os pedidos, pois além de fabricar cerveja preta, eles também distribuíam águas e vinhos.

Sua memória era mesmo espantosa. Até o fim da vida, aos 82 anos, era capaz de lembrar de fatos de sua infância e juventude com tamanha riqueza de detalhes que era como se nele memória e imaginação trabalhassem estreitamente juntas, feito nos sonhos. Não era, entretanto, um nostálgico melancólico - certamente porque tão grande era seu poder de lembrar que as coisas jamais lhe pareciam distantes.

Faz sete anos que meu pai morreu, mas há memórias tão vivas dele em mim que às vezes é como se apenas estivéssemos morando muito longe um do outro e as condições de comunicação fossem precárias. Mais do que tudo, sinto falta de sua voz. Nunca fomos pessoas de gravar ou fotografar os eventos domésticos e familiares, por isso, há poucos registros fotográficos e nenhum sonoro de nossa vida juntos. Não me arrependo: prefiro cultivar em mim, sua lembrança do que confiá-la a outros meios. Isso exige que periodicamente eu o recorde. Um dos modos, como disse, é andar pelas ruas do Centro.

Amar essas ruas estreitas, com seus sobrados e calçamento de pedra, suas igrejas trabalhadas em detalhes de cantaria é o modo viril e, ao mesmo tempo, doce que minha memória encontra de reverenciá-lo, de fazê-lo quase vivo. Assim, aliás, era meu pai, um homem doce e viril, que às vezes interrompia seus longos silêncios para cantar fados e modinhas de sua terra que lhe viam subitamente à cabeça.Como todo imigrante, era um trabalhador incansável. "Labrego" era o termo pejorativo que os brasileiros atribuíam a esses homens rudes vindo do campo, mas a mim, a palavra sempre soou forte e poderosa, as raízes agarradas à terra. Disse rude, porque era essa a impressão preconceituosa que se tinha desses agricultores que vinham tentar a vida nas cidades do outro lado do Atlântico. Mas o ensino primário que recebeu em sua aldeiazinha no começo do século passado era de uma qualidade impensada nas escolas públicas de hoje.

Sua caligrafia, por exemplo, era perfeita, coisa de copista medieval. Sua capacidade de fazer contas era algo inacreditável para as gerações acostumadas à máquina de calcular. E lia, lia muito no pouco tempo que lhe sobrava. Aprendi a gostar de Nelson Rodrigues com ele e, até hoje, me comove achar em algum livro antigo o xis que fazia com a unha para assinalando o parágrafo onde interrompera a leitura ou um pedacinho de papel marcando a página. Coisas de meu pai...

Hoje à noite, nos encontraremos secretamente, quando eu me juntar à multidão que nos fins-de-semana lota as ruas da Lapa para curtir a mais variada exposição de ritmos musicais da face da terra. Samba, pagode, rock, reggae, dança de salão, capoeira, olodum, o diabo! Duvido que em qualquer outra cidade do mundo se possa encontrar tantos ritmos reunidos em tão pouco espaço. Um ouvido atento e musical chega ao delírio em alguns pontos muito específicos desse percurso: o sujeito pára e, se enclinar-se mais para a esquerda, ouve um samba; se inclinar-se mais para a direita, ouve um reggae. Loucura que faz da Lapa a capital cósmica da música onde negros, brancos, mulatos, gays, travestis, putas, putos, góticos, punks, sambistas, roqueiros, fashions, mulambentos, coroas e anitas - enfim, toda a variada fauna humana se reúne num clima de total liberdade e nenhuma violência. Que Deus mantenha longe os "reis da noite" da Zona Sul, a polícia, a prefeitura, a ordem, o progresso e todo tipo de bacana babaca e corrupto.

Hoje vou de novo lembrar do meu pai ao passear por essas ruas da Lapa que me são tão caras: na Lavradio, onde fica a Tribuna e ficava a cervejaria dele; na Riachuelo, onde eu nasci, no Hospital da Ordem do Carmo; nas vielas estreitas próximas aos Arcos: marcos principais do secreto mapa dos meus afetos, meu mais nítido retrato, eu para além de mim refeito em pedra. Hoje estarei lá, eu - tão intensamente eu que serei todos e ninguém. Eu, à flor da pele, atento, os sentidos refinados pela memória e imaginação herdadas de meu pai.

Mas, chega, leitor, não quero cansá-lo com minha lembranças, fantasias e ilusões. Nos encontraremos na Lapa, senão em corpo, ao menos em espírito. E "com isto já não vos enfado mais", como dizia às vezes meu pai ao se despedir.