6 de maio de 2002
Tipos de leitor

Uma leitora reclamou por e-mail da expressão "leitor-fêmea": achou machista demais. "Leitor-cadela" então! ela achou o cúmulo da vulgaridade. Bom, "leitor-fêmea" é um "conceito" de Julio Cortázar, inventado por Morelli, um personagem de O Jogo da Amarelinha.

Define o leitor que, ao papel de cúmplice, prefere o papel de vítima. Aquele que quer de novo "deixar-se arrebatar", "sofrer" pelos mesmos sentimentos, ou melhor, pela mesma história. O exemplo mais exato dessa fórmula literária são as novelas. É sempre a mesma coisa, com diferenças meramente circunstanciais: outros atores, outras paisagens, outras palavras. Só o sentido não muda. Repete-se o esquema, a estrutura, como no pesadelo ou na neurose (Ah, sim! Como nas eleições também!).

É isso: o leitor-fêmea prefere a reprodução à criação. Em consequência, vive num cio permanente por "mais do mesmo": mais da mesma emoção. Por isso o chamei também de "leitor-cadela". E até prefiro essa expressão porque marca bem um processo de "desumanização" a que somos todos submetidos pela "cultura popular": não há mais como negar a crescente cadelização dos leitores. Algumas músicas já estão até ensinando a galera a latir! Bons tempos aqueles em que nos acusavam de antropomórficos... Agora são os homens que vão se animalizando e não demora muito você vai ouvir au-au em resposta a um bom-dia.

E nem sequer estamos nos tornando animais selvagens e temerários. Não, essa cultura-fêmea a que estamos todos mais ou menos viciados - totalmente dependentes como a Mel de O Clone (que sutileza de exemplo!) - essa cultura popular vai nos tornando animais domésticos, dóceis animais domésticos facilmente adestráveis, capazes de realizar truques encantadores tipo chorar diante de certas cenas ou rir ou espumar de raiva ao comando de certas palavras. Muito bom mesmo o nosso performance. Já nos desumanizamos tanto que até nossa ração é aquilo... (esta piada foi animal!).

Animais domésticos têm donos. E dependem deles pra tudo. Nos tornamos mais e mais escravos. A ponto de qualquer burocratazinho mais graduado ou qualquer candidatozinho a cargo público eletivo se achar no direito de discutir com a maior cara de pau quanto eu TENHO (repare bem, tenho) de pagar de imposto (o nome já dis tudo: IMPOSTO). Quer dizer, EU trabalho, EU ganho e são ELES que dizem quanto EU tenho de pagar para ELES? Mas eles não eram para ser meus servidores? EU não sou, afinal, O POVO? E eles não deveriam ser NÓS? Oh, deus, são tantas as perguntas.. Começo a ficar confuso.. Au-au-au!

Tem se falado da suposta "ascensão" da extrema-direita na Europa. Digo suposta porque se Bush, Sharon, Berlusconi, Chirac e outros não tão bem posicionados não são "extrema-direita" são o quê? Meia-direita? Zagueiro central? Líbero? Por aí já se vê que muito se tem falado sem muito se dizer. O que me deixa muito à vontade para falar também. E o que eu digo é que Chirac e Jospin representam a burocracia estatal, uma classe que não é nem de direita, nem de esquerda e que só representa a si mesma.

Chirac e Jospin acusam Le Pen de racista (o que é verdade), mas no bairro onde Chirac e Jospin moram, árabe e negro não entram nem pra varrer rua. O que uma parte do eleitorado está dizendo é "chega desse humanismozinho de salão meramente retórico que vocês usam pra me arrancar mais impostos". Parece piada que para "barrar Le Pen" ou a "extrema-direita" os franceses tenham que votar em... Chirac!! O cara é um ladrão atrás de mais cinco anos de imunidade

Le Pen é um populista escroto e vulgar. Mas o que é o Chirac? Em que exatamente um é melhor do que o outro? É óbvio que se Le Pen fosse eleito ele não poderia fazer metade do que promete - mas fazer promessas que não irão cumprir é a praxe de todos os políticos... É óbvio também que Le Pen não será eleito. Mas certamente terá mais votos do que se espera. Ele é o voto de protesto. O voto de quem acha ainda mais asqueroso do que a sujeira de Le Pen a limpa aliança Chirac/ Jospin.

Uma esquerda com o mínimo de dignidade, entre Chirac e Le Pen recomendaria a presença em massa de seu eleitorado votando nulo. Porque esta seria a hora da França expressar claramente a força de suas tendências eleitorais. Então, numa hora dessas, a esquerda tinha de mostrar o seu tamanhop e deixar que a direita dividisse seus votos entre Chirac e Le Pen. Mesmo correndo o risco de até ver Le Pen no poder. Dane-se! Ao menos ela não teria se emporcalhado

Deixar que a eleição se polarize entre Chirac e Le Pen, aderindo ao primeiro numa aliança casuística não é só uma indignidade, é também uma burrice. Claro, depois desta eleição, Le Pen, seja qual for o resultado, emergirá como a segunda liderança política da França. Com quem será que Chirac acabará preferindo governar? São as tais "afinidades eletivas" - que a direita não confunde NUNCA com as meras e circunstanciais "afinidades eleitorais".