7 de outubro de 2002
O quanto pode um cd

Não há como ouvir Misty, na voz de Ella Fitzgerald, e não te ver, de repente, viva, naquilo que te justifica e perdoa, toda graça e doçura. O resto é história, matéria de esquecimento. Eu te prefiro é nestes retratos súbitos que são a música me lembrar teus olhos suplicantes e não o duro registro que o rancor insiste em guardar dos teus erros...

Começo por teus olhos, mas logo Ella me leva mais longe, num passeio por teu corpo - lentamente, na cadência dedilhante do piano, e eu quase vejo, no lusco-fusco desta sala, a luz se espelhando no liso de tua carne confiante e exaltada de animal que alcança a plenitude, e se modula em gestos úmidos e inesperados como a voz de Ella entre graves e agudos... Lembro de um verso de Mário Quintana, tirado de um livro, Espelho Mágico, autografado por ele quando o entrevistei, tanto tempo faz:

"Todos têm seu encanto: os santos e os corruptos.
Não há coisa, na vida, inteiramente má.
Tu dizes que a verdade produz produz frutos...
Já viste as flores que a mentirá dá?"

Pois é, ouvindo Misty, tudo são flores - e que se danem os frutos: a vida, dizem, é vestibular pra anjo e de você não quero lembrar senão o melhor. Tudo se vai, ceifado pelo instante sucedente e fica aí a memória remoendo nozes... A memória a gente tem de aprender a usar pra sentir melhor o presente e tornar mais fundo cada instante, pra ser mais na hora, intensificando os gozos. E só. Como diz o Antonio Maria, só se ama com a vida inteira.

Aliás, pensando bem, ninguém guarda fotografia ruim. Pra quê? Que fiquem só as boas. Senão é mais coisa pra se carregar. E já são tantos os fardos, as incertezas presentes, os mistérios, para que guardar também o lixo?

O bom é mesmo que "de tudo fique um pouco" para ir compondo isso que é o chão da alma, mosaico de lembranças, íntima calçada da fama . Além do mais, isso de guardar rancor de quem se amou é de um mau-gosto só. É feio cuspir no prato em que se comeu, ensinam todas as avós. E por falar nelas, mágoas são como anáguas: já não se usa mais..

O tempo torna irrisórias a vitória e a razão. Pouco importa quem estava certo ou errado, quem venceu ou perdeu. Vivemos o instante, ou melhor, o momento, que é a soma dos instantes que acabam por dar substância a qualquer ato. Mas, depois, tudo se esvai, arrastado pelo fluxo incessante da vida.

E se até contrato de locação às vezes não acaba bem, o que dizer de longas histórias de amor, sempre cheias de intensidades que nos fazem como árvores carregadas de flores e frutos.  E tem mais: sem alguma dor não há poesia. A gente se aprende é na ausência e na falta. "É bom saber onde dói", deve ser o que pensa o boxer quando vai à lona pela primeira vez. É o que lhe serve de consolo e estímulo para continuar a luta.

Ninguém escapa dessa solidão, a do boxer na lona. Ele também deve olhar pra sua mão direita, se for canhoto, e dizer, como quem olha o retrato da amada que partiu: "Você me traiu. Você não estava onde eu pensei que você estava".

É nssa solidão que se abriga o "só eu sei quanto sofri" inquantificável que, no entanto, todo mundo sabe o que é, pois tem o seu. "Não precisa nem dizer...": é a tal dor-de-cotovelo que nos humaniza, que nos qualifica como humanos e habilita a sentar em qualquer mesa de bar e ser benvindo.

Além do mais, saber que algum dia e por um tempo a vida foi a felicidade dessa orquestra de metais e cordas - conduzida por sei lá, Duke Ellington? - saber que a felicidade já soube dizer-se num duo de Louis e Ella cantando I Won't Dance - saber isso - ter essa certeza - é absolutely stumped...

Impressionante o quanto pode um cd...