10 de junho de 2002
Harmonia e evolução

Tanta coisa inútil que a gente aprende na escola e não sabe explicar, por exemplo, o que faz essa meia-lua imensa ali no céu tão tarde da noite, como se tivesse acabado de nascer agora. Exata meia lua como se fosse... um pedaço de melão flutuando no céu da noite alta! Uma lua de melão que chega a me dar fome - e, ainda bem, o que não me faltam são frutas na geladeira. Há mais variedade de frutas na minha casa do que na Finlândia inteira! Maçã, mamão, fruta-do-conde, caqui, banana, laranja, graviola, maracujá, limão (sim, limão também é fruta, mas a fartura é tanta que gente até esquece...)

É inacreditável pensar que a Finlândia só tem uma fruta - uma fruta que eu nem lembro o nome, mas de que se fazem todos os doces: compotas, geléias, sorvetes... Solte um finlandês numa feira - qualquer uma dessas feiras tão cotidianas que nem lhes damos mais valor - e ele se perde, extasiado com cores e sabores inauditos, impensados

Vivemos sob um fausto de frutas - e nem nos damos conta de tanta beleza. Não há fruta feia. Veja a banana, leitor. A banana é um luxo de simplicidade. Seu design é tão perfeito que quem olha pensa até que Deus não é brasileiro, mas italiano. Tudo na banana é fácil: fácil de levar, fácil de abrir, fácil de comer. Fora que não existe flor mais bonita que a bananeira - porque a bananeira, leitor distraído, é uma flor, gigantesco antúrio sobrevivente de outras eras

Já o maracujá seria um fenômeno de marketing. Como se Deus, não sabendo mais o que inventar, tivesse reunido sua equipe de criação e depois de muito matutar e discutir, um anjo mais genial sacasse de repente:
- Já sei! Vamos lançar a primeira fruta crocante!

Mesmo o abacaxi é outro luxo - a começar pelo nome, que no plural então é uma delícia que se saboreia já só em dizer: abacaxis. Soletre, escandindo bem as sílabas: a-ba-ca-xis. É tão melhor, que o abacaxi em sua versão menos espinhosa, já vem no plural: ananás. Por isso acho injusto dizer que alguma coisa é um abacaxi só porque dá trabalho "descascar". Nada! O abacaxi dá é pena de cortar de tão bonito

Falei das feiras e seus efeitos sobre um finlandês... Pois é, a feira é uma nostálgica lembrança do Paraíso. Quem já leu a carta do Pero Vaz de Caminha - quem já leu? - percebe claramente que ele pensava ter chegado ao Paraíso, impressionado com a beleza e abundância de tudo, a liberdade e inocência de todos. É comovente ler as paráfrases do Sermão da Montanha que Caminha faz, como que para apontar em linguagem quase cifrada seu espanto e sua dúvida metafísicos: teremos chegado ao Paraíso?

É interessante perceber, aliás, que, desde a origem, o Brasil vive essa tensão entre Natureza e Palavra, abundância e sintaxe que lhe dê conta. Por isso somos barrocos antes mesmo do Barroco. De certo modo, até, nós inventamos o Barroco. Pois, essa tensão já está lá, na carta de Caminha ou em Anchieta escrevendo versos na areia ... E está lá, de novo, novinha em folha, na perplexidade do finlandês diante da exuberância de uma ordinária feira suburbana: será o Paraíso? E as palavras não dão conta de dizer, de enumerar tamanho excesso

É o Paraíso, sim. Foi preciso que degradássemos a Abundância em desperdício e a Palavra em retórica para nos darmos conta de que é, sim, o Paraíso. E o perdemos de novo - mas não haveria outro modo de recuperá-lo - senão perdendo-o de novo para podermos então lembrar que já o havíamos perdido antes.
Nos degradamos ao limite sob a égide de uma bandeira - a única a conter palavras! - que exalta em suas cores o ouro e a mata e nos exige Ordem e Progresso

Quero mudar as cores e as palavras da bandeira brasileira. Em vez do verde e amarelo, eu quero o verde e rosa da Mangueira (o verde e rosa do mar e do céu sob o sol poente, como explicou Cartola um dia...). Em vez de Ordem, quero Harmonia. Em vez de Progresso, quero Evolução. Harmonia e Evolução - os dois quesitos básicos de um bom desfile de escola de samba. E que guardam o mesmo sentido de ordem e progresso, mas sem o ranço autoritário, tirânico que contamina esses termos. Não somos um exército, somos uma nação - ainda por nascer e, no entanto, pronta - na mistura de raças que produz mulatos de olhos verdes e japonesas com bunda. Estamos prontos - e nosso corpo mestiço é finalmente nossa alma. Faltava-nos só uma bandeira de cores e palavras novas. Já não falta mais.