14 de outubro de 2002
Matéria da alma

Há dois poemas que não me posso imaginar sem eles, matéria da minha alma: Tabacaria, de Fernando Pessoa, e Os Ombros Suportam o Mundo, de Carlos Drummond de Andrade. São meus. Fui eu que fiz - sem ter tido sequer o trabalho de escrevê-los. Há outros poemas assim. Há também livros inteiros. Por exemplo: O Jogo da Amarelinha, de Júlio Cortázar. São muitos os pedaços da minha alma...

Mas agora quero falar dos poemas. Porque Drummond faz cem anos e é inevitável ouvir as comparações de sempre entre ele e Pessoa, numa espécie de Fla x Flu literário. Bobagem, claro, isso de se tentar comparar escritores. Mas o que não é bobagem nessa vida, leitor? Esta é, ao menos, uma bobagem benigna, dessas que não fazem mal a ninguém. Bobagem rara, até.

Se não instrui, ao menos diverte fazer com que o tempo passe povoando-o de palavras bem dispostas feita casinhas alinhadas de um caminho que se percorre distraído até se chegar num alto de onde, enfim, se descortina o poema: "mundo, mundo, vasto mundo"... Não, não! O poema de Drummond que eu quero é outro e começa assim:

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Cito de cabeça e depois confiro nas Obras Completas, da Aguillar, papel arroz, capa de couro, página 110. Surpreso, me descubro exato. E prossigo, o coração quente como quem revê um amor:

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
Mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
E ele não pesa mais que a mão de uma criança.

O poema prossegue em mais sete ou oito versos cuja a dureza discreta e exata contrasta com a grandiloqüência de Tabacaria. Deixo ao leitor a tarefa de ir buscá-los pelas livrarias como quem garimpa pedaços perdidos de si entre os escombros de uma vida. Será, leitor, nossa homenagem, também exata e discreta, ao centenário do poeta.