27 de maio de 2002
Trabalho

Não há nada mais indigno do que o trabalho. Só mesmo a extrema necessidade pode justificar tamanha subserviência e alienação. É o meu caso: duro, tenho que trabalhar. Não falo destas crônicas que escrevo por prazer e, espero, causem a mesma sensação em quem as lê. Falo do "serviço voluntário obrigatório" a que a princesa Isabel nos condenou a todos em troca de uns caraminguás que aqui chamam de real apenas por perversa ironia. Lógico, hoje vejo que só podia ser mesmo gozação. Ou alguém mais, além de mim, chegou a acreditar que era sério?

Enfim, temos que trabalhar... E antes que algum calvinista salte no meu pescoço e me venha argumentar com o Velho Testamento - "ganharás a vida com o suor do teu rosto" ou algo assim, diz o Gênesis (o trabalho como uma condenação por nossos avozinhos, Adão e patroa, terem cismado de provar da Árvore do Conhecimento - nada a ver com sexo, portanto) - digo que sou um legítimo cristão que se guia apenas pelo novo Testamento, mais exatamente pelo Evangelho de Mateus: "Olhai as aves do céu: não semeiam, nem colhem, nem ajuntam e celeiros. E no entanto, vosso Pai celeste as alimenta. Ora, não valei vós mais do que elas?" - e por aí vai, num dos momentos mais brilhantes de toda a literatura: Mateus, 6, 25.

Claro, há até o trabalho justo, lúdico, feliz. Ou melhor, havia. Esta sociedade em que vivo conseguiu degradar até o crime, o que dirá o trabalho. Hoje na TV se come barata por dinheiro e não há humilhação a que um sujeito não se submeta em troca de uma mixaria - e rindo, pois a TV, pela repetição exaustiva, já legitimou a submissão ao "tudo por dinheiro".

Honra, dignidade, orgulho são atributos meramente acessórios que apenas "valorizam" o sujeito e o tornam mais caro e portanto mais atraente aos olhos desse varejo empreendido por vulgares Mefistófeles de balcão - tipo Gugu, Faustão, Ratinho e outros seres semelhantes.

Mesmo a única forma honesta de prostituição - a prostituição sexual - foi pro brejo. Oprimidas pelo fantasma da Aids e pela brutal concorrência de artistas, modelos e mocinhas de família, as prostitutas se tornaram a ponta de estoque de um vasto comércio cuja oferta se estampa em bancas de jornal, anúncios e programas de tv... Concorrência desleal, como se vê.

Quanto custará uma moça dessas de TV ou "de sociedade"? Daria uma boa reportagem: um mês circulando pelos "ambientes" só levantando o orçamento... Claro, já o lead e o sublead da matéria valeriam a qualquer jornal processos suficientes para levar qualquer um à falência. A verdade não passa de mais um fetiche, meu leitor hipócrita... Continuaremos a ignorar os "bastidores" do negócio, a suja engrenagem por detrás das luzes feéricas da roda gigante. Continuaremos, enfim, sem saber o que de fato interessa. Devo estar parecendo tão amargo...

O que fazer? Maio passou com seus dias de secreto veranico e eu nem sequer fui à praia. Dias de rei e eu suando como um escravo pelas ruas do Centro. Pra quê? Não estou fazendo gênero "deprimidinho de salão" ou niilista francês, até porque não tenho mais saco pra isso. Mas digo só o seguinte: li, estudei, pensei, escrevi o bastante para concluir que não há o menor sentido na vida que levamos ou somos obrigados a levar. É tudo uma imensa farsa e somos todos prisioneiros. Há, digamos assim, um fundo metafísico na conclusão, mas o problema - ou melhor a solução - é essencialmente política e, ao mesmo tempo, individual.

Nos roubaram o essencial, a Liberdade - e ainda nos incutiram o medo pânico de morrer. As Trevas avançam - com nome, sobrenome e hora marcada. Vivemos todos sob o signo de uma "utopia negativa": o presente é uma merda, mas tudo indica que o futuro será ainda pior. Muito pior. Basta ver uma seqüência de clipes da MTV: miséria e violência glamourizadas - tinturas de cabelo e piercings no lugar de idéias. Acho que se houvesse um lema seria: "Faça um bem para a humanidade: mate seu vizinho e se suicide depois".

Eu acredito na vida, nas pessoas, em Deus - como eu o concebo. Mas nisso que está aí e chamam de sociedade, cultura ou seja lá que nome dêem... Lula, Serra, Ciro, Gurizinho? Esses caras só querem a minha grana no fim do mês pra distribuírem entre os amigos e brincarem de deus. Revolta. Revolta civil: no momento, todas as minhas esperanças se voltam para a Argentina. Só eles vivem a suficiente mistura de cultura genuína e caos para gerar alguma novidade explosiva. Veremos...