28 de janeiro de 2002
Chuvas

Finalmente o sol se insinua silencioso e intenso por entre as nuvens. E de novo o azul, se não impera de todo, ao menos se mostra imenso, rompendo a unanimidade do cinza que dominava o céu nestes dias de verão estranho. Um vento frio ainda agita as folhas sobre a mesa, vindo do Leste, em rajadas intermitentes, trazendo novas nuvens que chegam do mar, lentos dirigíveis voando baixo sobre a cidade que aguarda tensa por mais chuva. Chuva-dádiva para as árvores, chuva-dúvida para os homens: ninguém sabe como será a volta para a casa ao final do dia. Muitos nem sabem se haverá casa para voltar ao final do dia, doloroso dilema dos mais pobres que se repete ano após ano.

É a loteria da miséria, a antiloteria onde o prêmio é não ser lembrado pelo sorte cega que arrasta barracos ao acaso. Nesse jogo, quem perde, ganha: os esquecidos são os verdadeiros afortunados. Mas o bilhete continua lá, estampado no contracheque ou em algo equivalente que comprove perante os outros homens a condição humilhante de quem trabalha apenas para sobreviver.

A gatinha chega na janela e debruça-se para fora, farejando o ar para saber se vale a pena correr para a praia e aproveitar o vacilante sol da manhã. Está de férias, é jovem e não pensa em outra coisa senão em aproveitar a vida de carioca que Deus lhe deu. Lá embaixo, homens e mulheres começam a chegar para o trabalho. Trazem casacos e guarda-chuvas pendurados no braço. Alguns também olham para cima, inseguros de seu futuro mais imediato. A moça da loja em frente me vê na janela e acena, discreta e sorridente.

Praia, engarrafamento, tragédia: a Meteorologia virou um ramo da Metafísica. Olhamos os céus e - rezamos. Intima e silenciosamente, rezamos. Não nos resta outra coisa senão rezar. Pai-Nosso, Ave-Maria ou um simples ato de contrição carregado de medo. Rezamos todos, com variadas intenções e propósitos, para que o sol se firme e volte a dar praia e as ruas não se alaguem e os barracos sigam firmes no alto dos morros.

Rezamos e, de quatro em quatro anos, votamos. Rezamos para os mesmos santos, fazendo sempre os mesmos pedidos. E, de quatro em quatro anos, votamos para os mesmos patetas vaidosos, renovando sempre as mesmas esperanças.

Quem pode nos valer, os santos ou os políticos? Os santos, certamente. Por incrível que pareça, são menos abstratos do que os políticos. Quem já viu, por exemplo, um vereador? Eu já, mas por dever de profissão - e assim mesmo, só os encontrei ao vivo, em carne e osso, na Gaiola das Loucas, que é como o povo chama a Câmara de Vereadores. Além disso, eu era imprensa e tinha hora marcada.

Mas quem já viu um vereador aparecer na cena de uma catástrofe, solidário aos eleitores? Mortos não votam e os marqueteiros recomendam que não se associe o nome do político a desgraças. Não, mortos e desgraçados eles dão pro santo... Vereador que se preza a primeira coisa que faz depois de eleito é se mudar para a Barra - ou onde você acha que moram as Lailas do Flamengo, os Carlinhos do Irajá e figuras semelhantes? Na Barra não tem catástrofe. Ao menos, das naturais (O Sérgio Naya não é uma força da Natureza...).

E, por favor, senhores vereadores, não me escrevam dizendo que não moram na Barra, que não se mudaram para algum Olimpo condominial cercado de grades e seguranças e permanecem em suas antigas casas nos bairros onde nasceram, solidários ao povo que os elegeu. É questão de tempo... A Barra a que me refiro é um estado de espírito, digamos assim. Mais dia, menos dia, quando vocês menos esperarem e sem se darem conta, vocês acordarão na Barra, num quarto enorme cheio de sol, longe das chuvas, da lama e de um povo feio, de poucos dentes e exageradas esperanças.

É questão de tempo... A carne é fraca, a vida é dura e a tradição é esta: os pobres entregamos aos santos e as verbas aos amigos e companheiros de primeira hora. Lá fora, o sol começa a ceder às nuvens que vêm do mar. É bem capaz de chover.