29 de abril de 2002
Estrelas cadentes

Sob a luz azul da lua quase cheia surpreendo de relance uma estrela cadente cruzar o exíguo espaço entre os prédios enquanto eu esperava na janela exatamente que dos céus caísse o tema desta crônica e me distraía pensando na moça de pernas muito longas e andar graciosamente desengonçado que no dia de São Jorge me ensinara a dizer Feliz Aniversário em romeno. "La mutz ans!" - ou algo que soa como isso...

Estrelas cadentes... Acho que sou o cara que mais vê estrelas cadentes nesta cidade. E ultimamente não têm sido estrelas cadentes discretas, dessas que fazem no céu um tracinho prateado tão pequeno que mal cabe um pedido. Nada! As que tenho visto são sedosos e flamejantes cortes que em um átimo de silenciosa violência rasgam o azul profundo em uma única e longa pincelada amarelo-laranja-anil que se fixa no íntimo e se dissolve no ar em seguida. Fazer um pedido? Nem ouso! Deus sabe melhor do que eu o que quero... Mas, se fosse pra pedir, eu diria modestamente: "Eu quero tudo".

Quero, por exemplo, que meu carro não enguice se eu cismar de ir a Teresópolis ver essa lua mais de perto. Aliás, como se diz isso - "ver a lua mais de perto" - em romeno? Ou "Há quanto tempo você não vê um cavalo?"? Cavalo, boi, galinha, pato e marreco... Sinto falta de outros animais. Gente, gente, gente - só gente: por isso as cidades são tão desumanas.

Quando eu digo que pediria tudo quero dizer que não esqueceria da humanidade. Não como um todo, mas singularmente, um a um. Como não haveria tempo para tanto, resumiria assim o pedido: "Que de amanhã em diante os jornais não encontrem mais assunto". Pronto. E o anjo encarregado de anotar os pedidos feito um celestial garçon haveria de se admirar da minha sabedoria.

Porque, vou lhe contar, ler jornal desanima...
Ao mesmo tempo, é como se já estivéssemos todos anestesiados. Ou melhor, como se já tivéssemos desenvolvido uma espécie de resistência que nos tornou mais insensíveis e indiferentes à dor - nossa e dos outros. O medo foi nos tornando mais e mais egoístas. E o egoísmo nosso, humano e natural, não quer outra coisa senão uma boa desculpa pra se instalar soberano em nossas almas: "Farinha pouca, meu pirão primeiro".

É como se estívessemos todos sendo insensibilzados para a vida, soldados potenciais em treinamento constante. Repare na cara das pessoas ostentando seus óculos escuros "killer style" (estilo assassino): elas fazem caras de assassinos! Repare: todo mundo quer ser durão, mal, insensível - sorrisos são sinais de fraqueza. Repare como andam pelas ruas falando ostensivamente em seus celulares feito chefes poderosos disparando suas ordens. Repare como estamos cada vez mais idiotas...

Semana passada falei do filme de Erik Rocha, sobre seu pai, o Glauber. Agora mesmo está passando uma retrospectiva de filmes de Godard. Eram filmes feitos para revolucionar o presente e parir o futuro. O futuro, naquela época, era para ser isto que chamamos de presente. Era, enfim, pra gente estar pensando e sentindo segundo aquela estética que recusa o "lirismo fácil do poeta municipal". Mas, não: os panacas de sempre, o Imortal Idiota, continuam se perguntando se aquilo é ou não é arte, se aquilo é ou não é bom!

Um filme de Glauber e Godard é sempre uma experiência intelectual filosófica política, estética cujo objetivo final é justamente o extermínio do leitor-fêmea, do leitor-cadela que só consegue consumir a lírica ração pré-fabricada que as tvs despejam na sua tijela todos os dias.

Nesse sentido, uma retrospectiva de Godard é o inventário arqueológico de um fracasso. Éramos para ser tão loucos quanto um filme de Godard - loucos pierrôs soltos nas ruas. Acaba que nunca fomos tão caretas... Pois, antes ainda havia o embate, a discussão, a diferença: esquerda e direita, doidões e caretas, Chacrinha ou Flávio Cavalcanti, Garrincha ou Pelé... Agora estamos todos vitimados pela indiferença que oscila entre o "vale-tudo" dos mais eufóricos e o "tanto faz" dos mais deprimidinhos. E cá entre nós e sem sentimentalismo: parece que só vai piorar. Carpe diem.