3 de fevereiro de 2003
Uma vaga e um túmulo

Que decepção! Quando o Brasil inteiro sonhava ver Robinho jogando ao lado de Ronaldinho, o mesmo maligno espírito pragmático que impregna a nação, barra o jogador sabe-se lá exatamente porquê. Chama-se um tal de Adriano, sucesso na Itália. E barra-se Robinho, sucesso no Brasil. É de matar.

Atônito, consulto o amigo e colega de redação Arthur Parayba, meu oráculo particular quando o assunto é esporte. Com a autoridade de quem viu Caim e Abel estrearem na zaga dos juniores do Olaria, Parayba me fulmina de argumentos: Robinho está sendo poupado para a seleção olímpica, não se pode correr o risco de "queimar" o jogador, o Santos vai chiar...

De repente, quando eu já quase desfalecia sob o peso de sua lógica implacável, Parayba me sussurra em tom de confissão: "Eu também queria ver Robinho jogando ao lado de Ronaldo...". E acrescenta, os olhos úmidos de um brilho delirante: "De Ronaldo, de Ronaldinho Gaúcho, de Rivaldo, de todos os erres!". E essa é a verdade que faz plantão em cada esquina do Brasil. Robinho é hoje uma unanimidade só comparável ao presidente Lula. Merecidamente.

O leitor há de lembrar da decisão Santos e Corinthians. O jogo era uma partida de xadrez equilibrada e tensa quando, de repente, aos 37 minutos do primeiro tempo, uma camisa sete alvinegra que parece habitada por Garrincha dispara com a bola, sambando em cima dela sem tocá-la, a bola sumindo e aparecendo aos olhos atônitos do zagueiro, dócil paredão de músculos que recua como se a mesma força que mantém a bola imantada aos pés de Robinho agisse sobre ele de modo inverso, empurrando-o para trás, irresistivelmente, até a grande área.

Um toque mínimo e Robinho não deixa ao zagueiro senão a alternativa do pênalti, previsível e inevitável, feito por uma perna desgarrada que se esticara sem saber bem se para matar a jogada ou manter de pé o corpo desarticulado pelo drible. Pênalti batido pelo próprio Robinho que, sem uma "paradinha" explícita, soube esperar o goleiro pular para então colocar a bola no canto oposto. E quando, no segundo tempo, o Corinthians ameaçou virar o jogo, foi de novo Robinho que, em dois lances de puro brilho, traçou no ar sua geometria do impossível e pôs dois companheiros de frente para o gol.

Pode ser que Parreira até mude de idéia e prevaleça a volúpia popular de ver Robinho com a camisa amarela da seleção. Mas, sei lá... Por conta da dupla Parreira/Zagalo o brasileiro já foi privado de assistir à realização plena do que foi o ataque dos sonhos de uma geração inteira: Ronaldinho e Romário. Agora renova-se a desesperança.

O Brasil vai à China para uma partida de exibição que só vale pelo dinheiro. Vai jogar com a China. Com a China! Chinês jogando bola é pior que brasileiro comendo de pauzinho. Quer dizer, não custaria nada Parreira satisfazer o desejo dos brasileiros de ver o moleque jogar.

Amargo de engolir é esse papo de que Robinho não vai porque é jovem. E Pelé, em 1958, era o quê? Duvido que não houvesse um idiota pra dizer: "Ele só tem 17 anos". E outro, para acrescentar: "E ainda por cima é crioulo...".

Porque naquele tempo, se dizia publicamente que o problema do Brasil era a quantidade de crioulo. Nélson Rodrigues tem frases memoráveis sobre a importância da conquista da Copa do Mundo em 58 para o brasileiro real, mulato de corpo e alma. Pena que não estou achando meu "À Sombra das Chuteiras Imortais" para citá-las. Devo ter emprestado a alguém e, como se sabe, livro bom não se devolve...

Mas Nélson dizia que, antes da Copa de 58, o Brasil era um país envergonhado de si mesmo. O que Pelé, Garrincha e Didi fizeram pelo povo brasileiro é algo digno de feriados, estátuas e efígies. Reverenciamos um remoto Zumbi dos Palmares, mas Garrincha está enterrado em Pau Grande, num túmulo mambembe, sem flores, sem letras douradas, sem anjos de mármore.

Esse amistoso com a China pode ser a oportunidade de se satisfazer um desejo e reparar uma injustiça. Escala-se Robinho e, com o milhão de dólares que a CBF vai levar, constrói-se um túmulo suntuário para Garrincha. Como diria Nélson, um mausoléu com cascatas artificias e filhotes de jacaré nadando de braçada. Enfim, é isto: uma vaga para Robinho, um túmulo para Garrincha - para reconciliar presente e passado e mostrar ao mundo que a alegre ousadia é a nossa marca.