24 de fevereiro de 2003
Sofia, 15 anos

Sofia fez 15 anos ontem. Vi Sofia nascer. Foi numa noite de tempestade, na cidade de Anapólis, Goiás. Estávamos eu, a mãe e o médico numa sala de operações simples, mas muito ampla e limpa. O médico era um homem alto e magro, de bigode fino e bem aparado, herdeiro do hospital construído não sei se por seu pai ou avô, numa arquitetura sóbria de tijolos aparentes, segundo a tradição que a família, se não me engano, inglesa e protestante, trouxera para o longínquo planalto goiano com um sentido missionário explícito que os descendentes conservaram.

Sabendo da nossa dureza e das barras que enfrentávamos, não nos cobrou nada. O tempo e a ingratidão me fizeram esquecer seu nome, mas não me apagaram da memória o exemplo. "Você agüenta ver?", ele me perguntou. E riu, quando respondi que sim. "Já vi muito peão desmaiar...", retrucou, com simpática ironia.

Não sei se lembro ou imagino os raios iluminando as grandes janelas, mas guardo o som e a visão da chuva caindo generosa e incessante. O parto não terá demorado mais do que quinze ou vinte minutos. O médico se movia com solene eficiência até que, de repente, éramos quatro: Sofia emergiu das entranhas da mãe, miudamente azul, toda sujinha de placenta e sangue. Eu vi, fiz questão de ver. Há algo de grandioso e impossível no nascimento que combina com a fúria das tempestades.

Cosmo sangrento e alma pura; violência e ternura: o poema de Mário Faustino, lido nessa época, me ocorre de novo, resumo do quadro e da vida. Quinze anos depois é para você, Sofia, que escrevo esta crônica. Estamos distantes agora, você em Nova York e eu no Rio, mas quero lembrar a você, nesta data tão carregada de símbolos, o quanto fomos felizes, eu, você e sua mãe.

Repito, mesmo sem seu prévio consentimento, o que já escrevi em um e-mail recente: sou seu "pai" e você é minha "filha". A idéia das aspas foi sua, mas gosto assim, porque elas ressaltam o que somos um para o outro: personagens de sonho, espécie de anjos. Nós mudamos a vida um do outro de um modo muito profundo e bom. Sugeri seu nome, ainda sem saber que você era menina; adivinhei o dia em que você ia nascer. Duvido que, se não houvessem as aspas, fosse maior a identidade que tenho com você, a despeito da pouca convivência que a vida tem nos imposto.

E vou achar o máximo se você disser que tem um "pai", sujeito meio alado em suas aspas, cavaleiro das nuvens, que surgiu do nada para, contra todos os presságios, dar a você um outro destino. Hoje, você pode até escolher seu pai - o que não é pouca coisa!

Queria ter estado aí, no seu aniversário de 15 anos. Mas, de algum modo, estive - e estarei sempre. Um mistério nos une, Sofia. Não nos cabe compreendê-lo, mas cultivá-lo.