21 de abril de 2003
Rosto-espelho

Um rosto se esculpe em minha cara. Quase sem que eu o veja construir-se, meus humores e o tempo vão construindo esta máscara, artefato não de esconder, mas de realçar. Invisível a mim ou quase, é o que de mais evidente há de mim para os outros. Deste rosto só tenho a imagem que me devolve o espelho onde o observo como a um estranho ou o trato com a cordial indiferença que devotaria a alguém familiar, mas pouco íntimo.

Meus olhos não brilham quando me vêem como brilham quando vêem você, por exemplo. Ao contrário, tornam-se, ao mesmo tempo, fixos e opacos, como se em transe: os olhos só vêem os olhos se vendo e nada mais. E nesse esforço de concentração, nada dizem.

O que o espelho me dá de volta é minha imagem mais pobre e distraída: olhos que se interrogam displicentes ou, meticulosos, se aprontam para os outros. A mim informa muito pouco esse rosto, a não ser que se trate de medir olheiras, o comprimento do cabelo e da barba, o avanço das rugas.

Mas, quando o vejo, não tenho dúvidas de que esse rosto é a minha cara. Razão nenhuma há para que o atribua a mim, a não ser o hábito. Certamente posso ver nele traços semelhantes aos de meu pai e minha mãe. Daí a tomá-lo como meu há um salto. Um sujeito que passe muito tempo sem se olhar no espelho ou que sofra mudanças bruscas na aparência, pode não se reconhecer ao se deparar com seu reflexo. Como se vê, a alma passa longe dos espelhos. "Quem sou eu?" não é pergunta que se faça a espelhos.

No entanto, não há objeto mais metafísico. Metáfora do pensamento, em contos, fábulas, mitos, o espelho é sempre um instrumento mágico e duvido que se saiba sua origem, tão antigo parece ser.

Todo esse papo furado, leitor, me ocorreu de manhã, enquanto me decidia entre a preguiça e a necessidade de fazer a barba. Difícil imaginar a vida sem espelhos. O tempo todo somos fotografados, filmados, refletidos, nossa imagem fugidia nos acompanha o dia inteiro, mais fiel que nossa sombra, que depende de espaço e luz. Cada vez mais, somos essa imagem que o tirano espelho nos devolve. Pura, aparência, nenhuma densidade. Melhor fazer a barba...