28 de julho de 2003
Beijo de placa

Quando Rodrigão puxou Camila e tascou-lhe um beijo na boca um "ah!" ecoou uníssono pelos prédios da ladeira incerta que é a rua Saint Romain, em Ipanema, segundo testemunharam os ouvidos ilibados do maestro Waldemar Mendonça Reis. No mesmo instante, no outro extremo de minha geografia íntima, a figurinista Luana de Sá, no quarto de seu apartamento no Méier, não ouviu o coro monumental, mas contribui ela própria com um "ah!" surpreso e satisfeito.

Eu estava no chuveiro nessa hora e não pude presenciar nem participar dessa imensa corrente, descarga de emoção que percorreu a cidade como um súbito arrepio. Foi, mal comparando, como um gol do Brasil em jogo de Copa. Lance, aliás, que merecia mil repetecos, " em câmara lenta", "por outro ângulo", "no tira-teima", com reloginhos na tela marcando a duração do beijo, a temperatura e o batimento cardíaco dos dois. O leitor me perdoe, mas embalado pela metáfora futebolística, fiquei o último cigarro todo tentando lembrar um gol que pudesse figurar o beijo, conforme me foi narrado por Luana com precisão e entusiasmo de locutor esportivo.

Como disse, não vi o beijo (e a Globo bobeoou em não repetí-lo!), mas pelo que Luana me conta, Rodrigão saiu da defesa para o ataque com rapidez fulminante e pegou a zaga de Camila inteiramente desguarnecida. A puxada pelo braço de Rodrigão em Camila foi como um passe de cinqüenta metros.

Ora, que outro gol poderia ter me ocorrido senão o terceiro do Brasil contra a Itália, na decisão da Copa de 70? O jogo estava dois a um para o Brasil e já caminhava para a metade do segundo tempo, lá e cá, o Brasil dominando, se impondo, mas a Itália sempre perigosa. Gérson recebe a bola na esquerda, ainda no campo do Brasil, caminha com ela até à lateral, pára na linha divisória, levanta a cabeça e, ato contínuo, faz um lançamento que percorre em diagonal todo o campo adversário até encontrar Pelé exatamente no bico direito da pequena área da Itália. Pelé sobe e apenas toca de cabeça para Jairzinho que entra com bola e tudo. Golaço.

Narro de memória e alguns detalhes podem estar errados, mas a geometria do gol é certamente esta. Três toques. Uma diagonal de 50 metros que parecia calculada pela Nasa. Uma escorada de cabeça de Pelé. Jairzinho no embalo entrando com bola e tudo. Enfim, uma pintura.

Volto ao beijo. Beijo de placa. A reação do público, que lotava esse imenso estádio que é o Rio, diz tudo. Fazia tempo que uma cena de novela, ainda mais uma cena assim, inesperada e quase secundária, provocava tamanha reação. Coisa de craque. E Rodrigão é craque. Desses raros, que batem bem com as duas: é grande ator e ainda joga de galã quando escalado, para delírio da torcida feminina. E foi o que se viu, o delírio.

É o que mais me encanta, essa súbita e violenta explosão de volúpia coletiva, um fluxo amazônico e repentino de emoção capaz de levantar pirâmides e derrubar governos. É nessas horas que eu renovo minha esperança de que é possível, que ainda é possível, que sempre será possível.