25 de agosto de 2003
Desejo é vida

Desejo é vida. Falo do desejo sexual mesmo. Porque a vida se faz com sexo. Por isso desejamos: para dar seguimento à vida. As pessoas se perguntam qual o sentido da vida. Falso problema: o sentido da vida é viver. Está na cara. Sempre lembro da pergunta que o Primo Levi se fazia em Auschwitz: "Por que eles não se atiram contra a cerca eletrificada e acabam logo com isto?". Era a vida que, mais forte que nós, só quer continuar vivendo. E sexo é vida: a vida, que é finita, se eterniza na reprodução.

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Essa talvez a fragilidade da vida, onde ela se distancia da perfeita infinitude, que não tem começo nem fim: a vida, para ser infinita, precisa da reprodução. Isso pode ser dito em versos: a perfeita infinitude é simultaneidade, "tudo ao mesmo tempo agora". A vida, "eterna enquanto dura", é sucessão. Se pensamos Deus como simultaneidade e a vida como sucessão, percebemos que a sucessão é um "efeito de simultaneidade". Explico: a sucessão é a continuidade. Mas só existe continuidade se o passado permanecer simultâneo ao presente, efeito que a memória produz. Dito de outro modo: a sucessão é uma simultaneidade imperfeita. Se querem uma prova matemática e indireta da necessidade da existência de Deus, esta serve.

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Nada mais natural, portanto, que a gente viva com sexo na cabeça, exalando desejo em todos os atos. Ou não: o desejo também se exaure, às vezes. Mas nunca deixa de estar lá, como desejo negativo mesmo. Sexo. Vida. Desejo. Dito assim, o desejo se parece muito com o amor. Opõe-se às vezes amor e desejo, como se desejo fosse sinônimo de paixão e amor sinônimo de vontade. Tudo,óbvio, se relaciona, mas melhor vê-los como graus da mesma coisa do que propriamente como entidades autônomas e opostas.

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Eu diria mesmo que amor e desejo são até sinônimos: desejo para ser desejo mesmo tem de ter amor, aquele fervor que faz o sujeito dizer que seria capaz de morrer pelo outro (mesm que, na hora agá, lhe falte coragem...). A gente pode até dizer que o sexo é a medida do amor. No sentido de que cada um ama como sabe ou como pode, mas não escapa de amar. O sujeito que paga uma mulher para transar pensando que escapa do amor, se ilude. Naquela hora, ali, a dois, ele estará amando - o quando sabe e o quanto pode (Sem preconceitos: e não só à dois, como à três, A4 e outros papéis e formatos...). É sempre amor e é sempre desejo. Estamos condenados ao amor e ao desejo. A melhor palavra para definir amor é atenção. Amor é atenção. Mais não sei dizer. Como agora, quando circulo pela casa silencioso como um gato e escrevo à mão apenas para não perturbar teu sono.

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Na crônica passada, eu perguntava se o Ronald, aquele palhaço-símbolo do Mac Donald's já tinha de fato visto uma criança com câncer. Claro, me referia ao departamento de marketing que transforma em autopromoção a caridade que pratica. Foi horrível descobrir que o fundador do Mac Donald's perdeu de fato um filho pequeno com câncer. Toquei na maior dor que um ser humano pode sentir que é a dor de um pai que enterra seu filho. Quero me desculpar por isso, ainda que seja imperdoável. Devia ter me inteirado melhor sobre a promoçao e si, suas motivações e resultados. Não o fiz e acabei falando besteira. O fundador do Mac Donald's soube transformar em doação uma dor genuína. Isso é sabedoria. Se a iniciativa degenerou em autopromoção barulhenta em nada lhe altera a essência generosa. É só uma deformação temporária, em sintonia com o momento que vivemos.