1 de março de 2004
Feliz aniversário

É duro mesmo. Quando nos damos conta, já somos alguém que se fez quase à revelia de nossa vontade, alguém que já começara a viver antes que sequer tivéssemos nascido.

Cedo, a incômoda impressão de que não nos pertencemos de todo começa a se imprimir em nossa alma como um duplo e com o tempo se tornará um fardo mais ou menos pesado segundo a sorte de cada um. Íntima herança, a única que afinal não podemos recusar: já está lá quando chegamos, parcial e irremovível como a nossa imagem no espelho. É natural que, contra esse outro que nos é, um dia nos rebelemos. Revolta que pode nos consumir toda a vida até que a morte lhe dê termo.

Mas sempre chega o dia em que finalmente desafiamos esse outro para um duelo que ingenuamente nos parece será rápido e fácil. A esta primeira batalha chamamos "adolescência" e ela começa aí pelos 16, 17 anos - quando, pela primeira vez, nos sentimos senão prontos, ao menos dispostos.

Por esta época, esse outro nos parece bem nítido: ele é nossos pais, a escola e seus professores, o nome que trazemos tatuado na alma. É fácil ver esse outro e recusá-lo. Tão fácil que parece fácil também saber quem somos: ora, somos o exato oposto desse outro. É nesse momento que baixamos a guarda e o direto que desferimos contra o outro vem estourar em nossa cara e logo estamos na lona. Porque dói em nós machucar esse outro. Porque, óbvio, esse outro também somos nós.

Tudo isto talvez soe como um tolo jogo de palavras, mas não encontro um modo diferente de falar sobre assunto tão vital e tão ambíguo. Certamente também não sou o sujeito mais indicado para abordá-lo: a minha luta íntima ainda está longe de terminar. Tudo que sei dizer com segurança é que de nada adianta brigar com esse outro: na verdade, ele não nos agride mais do que a imagem refletida no espelho. Se lá estão as espinhas, as olheiras, o olhar amargo ou triste de nada adiantará socar o espelho.

Eu custei a aprender que a violência é inútil. Custei a aprender que a força tem outro nome. Aliás, guarde esta imagem, deixe que ela se fixe em sua mente: no Tarot, a Força é representada por uma mulher abrindo a boca de um leão. Esta imagem é o meu melhor presente para você este ano.

Ter 16 anos não é fácil. Ter 45 anos também não, mas pelo menos já passou o impacto da novidade. Não vou ficar dando uma de "pai" sentencioso. Não pega bem a esta altura da nossa vida.
Também não vou mentir para você - não acho que nada melhore com o tempo, ao menos não necessariamente. A não ser que a gente trabalhe muito para isso. Então tudo que eu tenho a dizer é: não tenha pressa - que é exatamente o mais difícil quando se tem 16 anos.

Tenho tropeçado ultimamente numa frase atribuída a Sartre que diz mais ou menos o seguinte: "Somos o que fazemos com aquilo que fizeram de nós". Acho que ele quer dizer que somos o que fazemos com esse outro. Portanto, é preciso conhecê-lo e tratá-lo com o cuidado e a atenção que qualquer outro merece.