14 de junho de 2004
Dos bons amigos

Mais que amigo, Alberto é irmão. Aliás, mais que irmão, porque Alberto  foi eleito. Pacto de quase trinta anos. Fazia tempo que a gente não se via. Fomos jantar no Amir, ali no Lido. Alberto é um gourmet e apaixonou-se por uma descendente de libaneses que o apresentou ao restaurante  de pratos sedutores, garçons vestidos a caráter e narguilés nas mesas.

Se eu escrevesse policiais, o Amir seria locação obrigatória: um restaurante  árabe no Lido - não existe nada mais ...

Mas eu falava de Alberto que entre os meus irmãos tem a qualidade de ser o que sempre me traz  a boa nova,  a palavra-chave  que de algum modo me altera a vida. Desta vez,  Alberto me insuflou a idéia de caminhar. Alberto sempre praticou esportes e agora descobriu o Nuno Cobra. Me recomendou tão vivamenteo livro que o comprei no dia seguinte. Gostei. Gostei muito da abordagem que o Nuno faz do corpo e do movimento.

* * *

Caminhar. Marcha batida pelas ruas do Catete e adjacências: súbitas ladeiras me saltam aos pés, oferecendo-se à subida, desafiantes e sinuosas - o bosque de sombras das altas árvores que se espalham pelos parques e jardins - o plano simples e macio da areia que se estende ao largo do mar.

Caminhar. Respirar esses ares de sal e musgo e pedra - respirar.

Misturo Nuno Cobra e Tchi Nhat Han, Jacob Boheme e René Descartes.

O corpo - você já parou para pensar o que é o corpo, leitor? Digo, o corpo, para a alma, o que é? O corpo é o rigoroso presente. O corpo é literalmente o lugar onde estamos. O presente - tudo que ouço e vejo e toco, tudo que sinto: isto é o presente, o sempre aqui e agora que nos acompanha até a morte.  Temos o passado, que a memória mantém vivo,  e o futuro, que a imaginação inventa.

Passado e futuro existem talvez em outro plano, insensível ao corpo - que é sempre presente. É no presente que se passa a vida. Todo o tempo. Sempre. E é no presente que precisamos estar - ensinam Nuno Cobra e Tchi Nhat Hanh, Jacob Boheme e René Descartes.

Mas tem toda a razão o leitor em perguntar: que presente? Que presente, se meu tempo já está todo vendido, comprometido com um salário mensal que paga contas, compras, prestações, mensalidades? Que presente é este que se fecha ao inesperado? E que corpo é este, viciado em responder estímulos de propaganda como um cão de Pavlov? Há outro presente possível?  E, pior: se houvesse, já não seria tarde demais para ele?

É complicado, complicadíssimo. Perdemos o presente, o corpo, a sensibilidade - três nomes para o mesmo. Vivemos espremidos entre o "se" do ressentimento, que nos corrompe a memória, e o "se" da vingança, que nos corrompe a imaginação. É dessa matéria que se faz o falso presente que vivemos.

Caminhar. Para ir se tornando íntimo do próprio corpo, esse estranho que medimos no espelho. Caminhar - para se dar conta do coração, da respiração, do movimento. Para começar a se dar conta do presente. Do verdadeiro presente.