5 de julho de 2004
A solidão do craque

Ser botafoguense é uma atividade cada vez mais abstrata e intelectual.  Sua emoção nutre-se não do presente  ou do passado recente,  mas de um passado mítico,  cada vez mais distante do mundo dos vivos. Quanto tempo ainda até que morra o último botafoguense a ter visto jogar Didi e Garrincha?  Na falta do que lembrar de mais recente, os botafoguenses engendram mitologias. E pensam. Pensam desbragadamente.

Foi vendo, por dever de ofício,  a derrota do Flamengo, na quarta-feira à noite,  para o Santo André, pelo título  da Copa Brasil, que, de repente,  me surpreendi pensando: "Se isto é o time do Flamengo, então, o que será o time do Botafogo?". Para quem não acompanha com regularidade  o futebol, mas mantém  uma cada vez mais secreta paixão pelo Botafogo, a pergunta pode ser aterradora.  Imaginar um time pior do que aquele do Flamengo é tarefa difícil. Mas o time do Botafogo está atrás do Flamengo na tabela do campeonato nacional. Mais exatamente,  o Botafogo está em último lugar - e o Flamengo em penúltimo.

Depois de muito pensar, cheguei à equação "O time do Botafogo é o time do Flamengo sem Felipe". Achei a definição muito boa. E triste.  Porque até eu, pela televisão, pude sentir que Felipe é a última alegria do povo carioca. Como acontecia com Garrincha, quando a bola chega a seus pés, a expectativa  do drible estonteante  cria no estádio uma espécie de unanimidade fulminante e provisória que há de durar o tempo necessário para Felipe realizar uma coreografia improvisada a contragosto  dos zagueiros encarregados de marcá-lo.

Num futebol cada vez mais corrido, quando Felipe pára com a bola diante do zagueiro e aguarda imóvel que ele venha lhe tomar a bola - e ele não vem, não vem, não vem... - um "uníssono silêncio" se materializa de modo tão evidente que talvez pudesse ser pesado. Nesses trágicos segundos, o futebol ganha a dramaticidade  da tourada: um homem está prestes a ser abatido pela humilhação mortal do drible "cantado" e inevitável.  Mas, no caso de Felipe, a solidão é mútua. Felipe está parado diante do zagueiro porque também não tem para onde ir. Ao contrário de Garrincha, ao contrário de Pelé, ele não tem um Didi, um Coutinho com quem tabelar. Felipe joga de fato sozinho.

Na verdade,  o Maracanã lotado de quarta-feira foi palco do encontro involuntário de três solidões: a solidão do craque,  a solidão do goleiro,  a solidão do torcedor . Ou mais exatamente:  a solidão do craque sem parceiro,  do goleiro sem zaga,  do torcedor sem esperança. Solidão porque nada de fato acontecia  enquanto o tempo passava inapelavelmente.

***

Na manhã seguinte,  ainda na televisão,  descobri (ou melhor, redescobri) outra solidão abissal: a solidão do eleitor. Assisti o debate dos candidatos a prefeito do Rio. Só Jandira Feghali me passou autenticidade,  só ela parecia ser exatamente  aquilo que estava ali. Todos os outros pareciam fantasiados: de césar  (de césar maia!), de conde, de bispo, de "o amigo do homem".  As mesmas fantasias de sempre, como nesses bailes de carnaval transmitidos pela tv.

A solidão de Jandira naquele cenário era a solidão de Felipe diante do zagueiro. Então lembrei de uma cena que vi, na Câmara de Deputados do Rio,  durante a diplomação (acho que é esta a palavra) dos deputados eleitos em 2002: Jandira Feghali e Denise Frossard sentadas lado a lado.  Lembro que Jorge Reis até fotografou. Duas mulheres independentes  e  corajosas, cuja força não havia homem em volta que rivalizasse.

Pena que diferenças partidárias e ideológicas as manterão separadas. Juntas seriam imbatíveis,  como Pelé e Coutinho.