12 de julho de 2004
Uma sonata para Brando

Revi "Último tango em Paris". Faço isso de tempos em tempos, porque é dos meus filmes preferidos. Ia pegar no fim de semana anterior ao anúncio da morte de Brando - que aconteceu na quinta-feira, dia 1 . Assisti-lo agora foi uma espécie de oração. Ele merecia. Paul, o protagonista de "Último tango em Paris" é talvez o personagem mais denso, mais vivo, mais verdadeiro da história do cinema. Não gosto desse tipo de classificação, "o mais", porque é sempre arbitrária, caprichosa, injusta. Mas não me lembro de outra performance de ator que tenha dado tanta substância a uma personagem.

É sabido que Brando "emprestou" suas memórias a Paul, que deu também a ele um passado errante que ironicamente faz referência a algumas de suas personagens anteriores - ex-boxeur (Sindicato de ladrões), aventureiro no Taiti (O grande motim), revolucionário na América do Sul (Zapata!), repórter no Japão (Casa de chá no luar de agosto…). O próprio Bertolucci se orgulha de dizer que foi Brando quem deu a dimensão humana da personagem criada por ele. Eu não tenho dúvida ao dizer que o americano errante em Paris de Brando tem a estatura de Hamlet, por sua inequívoca humanidade.

A cena final, quando Paul "encara a morte de frente" é um poema, uma síntese: vemos, por seus olhos, a vida esvair-se encarando a morte com perplexidade, encantamento e pavor. Vemos, pelos olhos de Paul, o intraduzível em imagens ou palavras. Corte. A câmera mostra a paisagem vista do balcão de Jeanne (e a palavra balcão aqui não é involuntária: "Último tango em Paris" também remete a "Romeu e Julieta" - e, não esquecer, a Orfeu): a ardósia dos telhados parisienses no entardecer do outono. Corta. Brando morto no chão encolhido em posição fetal. Câmera abre para dentro da sala. Jeanne, agarrada à "pistola" do Pai, repete ensaiando uma justificativa: "Eu não sabia nem seu nome…". Fim.

Antes, no começo da cena, logo depois de levar o tiro e sair para a varanda, Paul, num gesto, ao mesmo tempo, solene e irônico que resume toda a impotente revolta do homem contra a falta de sentido da vida (fundamento da aterradora liberdade que gozamos), Paul tira o chiclete da boca e o gruda sob o parapeito da varanda - como fizeram alguma vez TODOS os adolescentes ao menos do Ocidente como uma espécie de secreta vingança, última cartada, palavra final de condenado, contra a incompreensível tirania dos adultos com suas regras e nomes.
Aquele gesto, naquele momento, feito por Paul - eis um verso que sintetiza o que somos, eis uma cena que rivaliza com a entrada triunfante de Édipo em Tebas.

Será que a produção do filme lembrou de tirar o chiclete depois? Tomara que não… Será que o dono da casa teve a sensibilidade de deixar o chiclete lá como uma peça de futuro arqueológico? Tomara que sim… Gosto de pensar que o chiclete está lá, como um monumento à humanidade.

Jules Verne, 1, em Passy, é o endereço do apartamento onde Paul e Jeanne tentam voltar ao Jardim do Éden. Não lembro de nenhuma referência ao endereço da casa da mãe, onde Jeanne mata Paul, mas é algo que dever ser fácil de descobrir, havendo tempo de se vagar pelas mitológicas ruas de Paris… E que saudade me dá desse tempo, tão breve, tão intenso…

Então, leitor, leitora, se acaso ocorrer de você estar aí, em Paris, me empreste seus olhos e com as mesmas discretas lágrimas cúmplices que não cessam de me aquecer os olhos neste dias, veja Paris como um dia a vimos eu, Gin, Paul e Jeanne…