6 de setembro de 2004
O eco de uma chama

A tal natural e humana predisposição ao erro ou algo ainda mais insólito a demonstrar a insistência destes fragmentos ressurgirem assim, de súbito, sólidos e sem vida , entre as tantas possibilidades de uma simples continuidade,

movidos talvez pela mania de guardar, de tentar reter isto - "o eco de uma chama?" - que não tem sequer um nome, e que a mão inadvertida insiste em tomar distraidamente para instalar o pequeno horror, o incômodo sinal de que será preciso abrir de novo a caixa e procurar mais atentamente -

e então reparar que existem outros lá dentro, suas cabecinhas negras sujando a ponta dos dedos inábeis no espaço exíguo que o tempo - a angústia de ter que inapelavelmente repetir - encurta ainda mais -

para finalmente se dar conta de que, se é assim e sem nenhum remédio, é certo que outros iguais voltarão à caixa pela ação da mesma vontade obscura e perversa e que, portanto, é inevitável que isto - como chamar um "palito de fósforo usado?" - esta coisa anterior e sem memória - volte a saltar da escuridão contra toda razão estatística para te impor o fracasso nada trágico de ter que de novo, sem emoção e esforço, repetir os mesmos gestos - talvez mais lentos agora, um tanto travados pela sensação de que algo ficou perdido para sempre na armadilha que tu mesmo preparaste para ti -

Eu, tu, esse outro que os olhos assistem na volta do reflexo da janela do vagão e que acompanha distraído o vai-e-vem dos trens, simultâneos e simétricos, até perceber o pressentido: que esta direção é familiar, mas oposta -

e que portanto será preciso refazer a trajetória, e saltar na próxima estação, para embarcar no trem seguinte, calculando o tempo perdido no erro tão canalhamente corrigível, imaginando que exatamente agora eu, tu, aquele outro estaria chegando à estação desejada e se encaminharia para a escada rolante - a boca amarga de cigarro e literatura, um leve sobressalto de cadafalso, a imaginar "Onde estará Gin a esta hora?".

Gin...
Eu tinha todo o Tempo. Não havia língua, pátria, família, espelho. Eu era livre. Livre para nada: livre para esperar... Sentado no parapeito da janela, eu te assistia, recostada contra a cabeceira da cama, na semi-escuridão do quarto, os longos olhos negros me interrogando sem palavras, lisos e brilhantes, fixos como duas pérolas suspensas no vazio do rosto sem rugas, jovem, bonito de se ver...

A impressão da tua pele me cobria o corpo: sensação de calma feita de melancolias e mansardas. Porque era noite e chovia, uma chuva finíssima, obliqua, visível apenas no contraste com a luz que pendia dos sucessivos postes da rua e fazia deles frondosas árvores de cristal em pleno outono - enquanto um gordo vaga-lume vermelho rebrilhava entre meus dedos, seu lento véu envolvendo de cinzazul o quarto em seu crepitar de relógio incrédulo.

E Gin continuava ali, um seio apenas um pouco maior que o outro, um riso de timidez medida de quem te olha com os olhos distintamente.
Gin - polida, nobre e nova feito uma lua ausente.

Agora, ela dormia...
E eu, imóvel - os olhos pregados no teto, duas ostras se comprimindo e dilatando ante a acidez de certas idéias:

"Por que sacrificar-se à beleza estática das estátuas
em favor de uma suposta melancolia -
a melancolia de um útero vazio -
Por quê? Para quê?"

Não - melhor deixar escorrer o corpo molemente num torpor de músculos satisfeitos, pairando sobre si mesmo, os nervos todos à mostra, à espera de uma percepção mais exata deste instante, que me trouxe você, dois desconhecidos que se esbarram por acaso numa noite de verão em Paris com todos os seus quartos ocupados...