13 de setembro de 2004
Jet lag metafísico

Estava falando dos meus jet lags metafísicos com a Lu, que foi passar o feriadão na Espanha. Pra quem não sabe, chamam de jet lag os distúrbios provocados pela súbita mudança de fusos horários em viagens mais longas. Eu o que sinto é, como falei, uma espécie de jet lag metafísico: o fato de eu, em oito horas, me ver num lugar em que até há pouco tempo eu levaria no mínimo dez dias para chegar me deixa muito perturbado.

É como se eu tivesse chegado nove dias antes e estivesse e não estivesse ali, um espectro consistente e fértil perambulando por uma rua qualquer de que não sei nem o fim nem o começo, discreta representação do infinito ao alcance da minha mão, ali, numa rua qualquer, a oito horas daqui, quando antes seria preciso atravessar um oceano.

Mas agora, basta essa mágica chamada avião voando a muitos mil metros de altura e a não sei quantas centenas de quilômetros por hora. O avião é uma loucura, um delírio. Olha que eu moro mais ou menos próximo ao aeroporto Santos Dumont e vejo avião passar o dia todo, mas, juro, a cada vez que um avião corta o céu, eu sinto um calor reverente no peito como se fosse a súbita aparição de um anjo.

Eu fico imaginando o que diria um aristotélico do século 16 ao ver passar um avião... Um daqueles aristotélicos que ao olhar as luas de Júpiter girando ao redor do planeta preferiram acreditar que a luneta criada por Galileu era um caleidoscópio demoníaco que projetava imagens falsas do que rever a tese de que a Terra era o centro imóvel do Universo em torno do qual tudo girava. A cena é cômica, mas representa bem o quanto a burrice é perigosa.

O problema da burrice é que ela é dogmática e inflexível. A burrice se aconchega em certezas e não percebe que toda opinião sempre fala mais de quem a emite do que sobre o objeto que comenta. "Todo pensamento é sintoma". A frase é minha, mas a idéia está em Descartes, na quarta meditação das "Meditações metafísicas"; no Nietzsche, de "O crepúsculo dos ídolos"; na psicanálise de Freud - apenas para citar as referências mais óbvias.

Mas nem assim. Apesar dos alertas do passado, a burrice vive hoje um momento triunfal. Em nome da espontaneidade, ela não tem mais dúvida em se exibir: é toda certeza e já não sabe sofrer, parafraseando um poema de Drummond que eu adoro, "Meus ombros suportam o mundo".

Enfim, não importa o tema, toda opinião sobre algo é sempre expressão de medos e desejos. Mas, quem tem ao menos a consciência dessa ironia tão própria do pensamento, mede melhor as palavras, sabe que o que diz não é a verdade, mas um sentimento que ainda precisa ser bem desbastado para ganhar alguma objetividade. Burro é quem não percebe isto e vive intensamente, vale dizer, apaixonadamente, sua opinião como se ela coincidisse verdadeiramente com o objeto a que se dirige.

Enfim, fala-se muito e com tanta certeza que convém duvidar, saudável hábito que, junto com a atenção, é o legado permanente da melhor filosofia contra a burrice que nos cerca por todos os lados, em todos os lugares.