18 de outubro de 2004
Ainda dá

A Swatch, em troca da doação de alguns milhões para a restauração do Cabaret Voltaire, em Zurique, ponto inaugural do Dadaísmo, deu-se ao direito de lançar não uma, mas duas coleções de relógios que têm o Dada por tema: uma, mais cara e limitada, destinada a colecionadores e milionários e a outra, mais popular, bem na linha "bonitinha, mas ordinária" que tornou a marca mundialmente conhecida.

Isso não é novidade para ninguém a não ser para mim, fascinado com atraso pela tripla profanação. A primeira, transformar o Cabaret Voltaire em imensa peça de museu aberta à gorda visitação de turistas e imbecis de toda espécie. A segunda, se apropriar do Dada para fabricar produtos. E, finalmente, a terceira: ainda se dar ao luxo de fabricá-los explicitamente divididos por classe, segundo o bolso do freguês!

Aliás, como o Dadaísmo queria ser uma profanação, trata-se da profanação da profanação - metaprofanação esterilizadora, forma final do capitalismo triunfante que faz de qualquer coisa produto: Dada vira relógio, Che vira filme, droga vira ouro, revolta vira consumo.

Mas a ironia mais funda me escapa... Fico apenas na estranheza que me causa ver que tudo, até o que se pretende sem sentido, acaba com o tempo, ganhando um.. Não sei qual a moral dessa história, se é que há alguma. Haverá quem diga que a revolta será sempre uma ingenuidade inútil que acabará a serviço de algum tirano oportunista.

Eu, na dúvida, prefiro repetir como meu amigo e artista plástico João Bosco Renaud: Ainda dá! Sempre. Nem que seja aos 45 do segundo tempo, ainda dá tem que ser o grito de guerra dos loucos e inconformistas - ainda mais em tempos tão medíocres como estes...

E quase por coincidência, Violeta Machado me manda por e-mail este Manifesto Canibal Dada, lido por Francis Picabia na "Soirée Dada" do Théatre de la Maison de l'Ouvre, em Paris, a 27 de Março de 1920, que veio muito a calhar:

"Vós sois todos acusados. Levantai-vos.
O orador não pode vos falar se não estiverdes de pé.
De pé como para a Marselhesa,
De pé como para o hino russo,
De pé como para o God save the king.
De pé como diante da bandeira.
Enfim, de pé diante de DADA que representa a vida e que vos acusa de tudo amar por esnobismo desde que custe caro.

Estais todos sentados? Tanto melhor, assim me escutareis com mais atenção.
Que fazeis aqui, amontoados como seríssimos crustáceos - pois vós sois sérios, não sois?
Sérios, sérios, sérios até à morte.
A morte é uma coisa séria, hein?
Morre-se como herói ou como idiota - o que é a mesma coisa.
A única palavra que não é efêmera é a palavra morte.
Vós amais a morte para os outros.
A morte, à morte, à morte.
Só o dinheiro não morre jamais, ele apenas viaja.
É o Deus, o único que se respeita, o personagem sério - dinheiro dá respeito às famílias. Honra,
honra ao dinheiro: o homem que tem dinheiro é um homem honrado.

A honra se compra e vende como o cu.
O cu, o cu representa a vida como as batatas fritas, e vós todos que sois sérios, vos sentireis pior do que merda da vaca.
Dada não cheira a nada, não é nada, nada, nada.
É como vossas esperanças: nada.
Como o vosso paraíso: nada.
Como os vossos ídolos: nada.
Como os vossos políticos: nada.
Como os vossos heróis: nada.
Como os vossos artistas: nada.
Como as vossas religiões: nada.

Assobiai, gritai, cortai minha garganta e depois, e depois? Eu continuarei dizendo que vós sois todos uns porras. E em três meses nós lhes venderemos, meus amigos e eu, nossos quadros por alguns francos."