1 de novembro de 2004
Vista cansada

Tem coisas de que minha vista não cansa. Tem outras que ela não alcança. Vislumbra, apenas. Com essas, às vezes se conforma e se aquieta; outras vezes, se agita, curiosa - a minha vista. E as vistas da minha vista - que são muitas. Posso contá-las, enumerá-las todas. Começo com o Rio visto do alto. As vistas óbvias, aquelas de cartão postal: Pão de Açucar, Corcovado, Paineiras, São Conrado, Arpoador. E há as vistas inesperadas, raras, tipo o Rio visto do topo do Vidigal ou os súbitos recortes da cidade que Santa Teresa nos oferece, generosa padroeira dos ociosos sem angústia.

Há também a vista que do chão se tem desses lugares: o Cristo que se infiltra sorrateiro por entre as frestas dos prédios, o Pão de Açucar visto do Aterro, íbis escavada na pedra, morro meio cara de cão, meio cara de esfinge. Ah! Quase me esquecia: a cidade vista da ponte Rio-Niterói, à noite, debruçada sobre o mar, enfeitada de luzes feito moça vaidosa que pisca para o sisudo céu de veludo.
E há, é claro, as vistas que são só minhas - esta, por exemplo, que me encanta tanto: o mundo visto da minha janela. Dida, dia desses, riu da coleção que faço de fotos de nuvens tiradas da minha janela. É que é vasto o horizonte que descortino. Vasto, surpreendentemente vasto, para um lugar tão comum, tão urbano. Quase nada se vê de humano. Não há janela próxima demais e a gente pode andar nu sem perder a dignidade. O que há de forte é este contraste entre o recorte irregular dos prédios vulgares e o céu, o imenso e cambiante céu, com suas cores, seus ventos desenhando nuvens, a lua e seu cortejo de estrelas, as gaivotas que vão e vêm, nas correntes de ar. E os fulgurantes crepúsculos, furiosos, fugidios.

Há, claro, outras vistas, visitas íntimas que só eu vejo: "o couro das chinelas estalando no chão a anunciar tua chegada: antes que eu te avistasse, eu te antevia, esse jeito sério e sorridente seu de monalisa e gato de Lewis Caroll - o melhor do meu dia, era - minha melhor vista."
Mas tem coisa, muita coisa, de que já se cansa a vista. Papo-saco enche. Nem catarata é, mas pura cascata. Cansa a vista, mas a gente suporta - e adia. Suporta com uns óculos pra perto. Mas não adianta: o que cansa a vista é a falta de horizonte.

A vista se gasta vendo tudo sempre de muito perto, nessa vida tão apertada de cidade. A vista precisa de horizonte, do vazio e do imenso.
Senão cansa mesmo. Isto, claro, sem desfazer dos óculos, nobres lentes sem as quais não haveria os Séculos das Luzes, que a bem dizer já são quatro, desde que Galileu fez seu telescópio e mostrou que a luz era algo que podia ser colhido e comprimido com um jogo bem montado de vidros...

* * *

Conta-me estupefacto o maestro Waldemar Mendonça Reis que viu na TV um deputado discursar da tribuna da Câmara incorporado de um espirito. Bem explicado: não era o deputado ele próprio quem falava, mas uma voz do além.
Concluímos, eu e o maestro, e com isto também concordou Ivy Exner, que a noticia é alvissareira. Em breve, não precisaremos mais votar apenas nos vivos. Teremos a alternativa de também eleger os mortos.

Já posso imaginar a próxima campanha do baiano Duda: "Chega de vivos! Getúlio para presidente". Ou Jucelino. Ou qualquer outro. A bem dizer, o velho Duda só não aceitaria ser cambono do Jânio Quadros.

Abre-se também um novo campo para o Direito, em face da necessidade urgente de se criar o Código Eleitoral Espírita. Eu a primeira controvérsia que vislumbro é decidir se Stalin por exemplo poderia ser prefeito de Salvador ou Porto Alegre. O fato de um espírito ter sido russo o impediria de ser candidato no Brasil? São questões que numa terra de bacharéis há de render muitas comissões e muitos mil réis.