3 de janeiro de 2005
Ano Novo, vida nova

"O passado é um deserto onde se pode vagar eternamente sem nunca se chegar a lugar nenhum." A frase me veio no meio da noite, dessas que nos obrigam a levantar e a psicografá-la em garranchos mal-arrumados no verso do primeiro papel que nos aparece pela frente, o espírito se equilibrando no dilema entre perder a frase ou perder o sono.
E depois, no outro dia, entender aquela letra? Diz-se que de poeta, médico e louco todos nós temos um pouco. Deve ser por conta da caligrafia!

Mas, dadas as circunstâncias, até que não está mal... Certamente, eu já saber o que está escrito ajuda muito. Decifrar minha letra exigiria de um estranho uma boa dose de interesse. "O passado é um deserto onde se pode vagar eternamente sem nunca se chegar a lugar nenhum." Gosto da frase, do aviso que está contido nela. Sobretudo porque é Ano Novo, um bom momento para se dar as costas ao passado, remoto ou recente, e mais uma vez tentar recomeçar a vida, senão do zero, ao menos do dois ou do três.
Há sempre tanto a perdoar e a esquecer (o que vem a ser o mesmo: o verdadeiro perdão é o perfeito esquecimento). E nem falo de perdoar os outros, mas a si mesmo. Quantas culpas e vergonhas arrastamos pela vida afora, lembranças obsessivamente recalcadas, mas nunca o bastante... Miragens desse deserto inesgotável, onde memória e imaginação se confundem e conspiram contra nós. Como ser generoso assim, sem antes esquecer-se?

"Uma coisa é certa: Deus não quer que cheguemos a Ele em estado de inocência". Essa frase não é minha, mas de Henry Miller, em "A hora dos assassinos". Ninguém escapa ileso desta vida.
Tudo bem, o Natal pode ser só um cardápio hipercalórico e o Ano Novo uma tsunami às avessas, feita de gente, usurpação da festa de Iemanjá pelos fogos e pelo som. Um duplo sacrilégio, enfim, signo da avassaladora decadência que nos consome.

Mas virá um dia o Natal sobre a Terra, de que falava Rimbaud em seus versos precisos de menino-vidente, e voltará a festa de Iemanjá a tomar conta das praias com a chama frágil de suas velas tremulando na areia, suas figuras de branco girando ao som dos atabaques e dos cânticos. Ao fim deste ciclo de magnífica idiotia, o singelo, o simples, o fraterno voltarão a sensibilizar o coração dos homens, agora anestesiados pela brutalidade e pelo excesso. "Deus não quer que cheguemos a Ele em estado de inocência".

Mas, até lá, pouco importa: a vida é sozinho e o passado um deserto. E não convém perder-se a vida no deserto. Ano Novo, Vida Nova.