"O passado é um deserto onde se pode vagar eternamente
sem nunca se chegar a lugar nenhum." A frase me veio
no meio da noite, dessas que nos obrigam a levantar e a psicografá-la
em garranchos mal-arrumados no verso do primeiro papel que
nos aparece pela frente, o espírito se equilibrando
no dilema entre perder a frase ou perder o sono.
E depois, no outro dia, entender aquela letra? Diz-se que
de poeta, médico e louco todos nós temos um
pouco. Deve ser por conta da caligrafia!
Mas, dadas as circunstâncias, até que não
está mal... Certamente, eu já saber o que está
escrito ajuda muito. Decifrar minha letra exigiria de um estranho
uma boa dose de interesse. "O passado é um deserto
onde se pode vagar eternamente sem nunca se chegar a lugar
nenhum." Gosto da frase, do aviso que está contido
nela. Sobretudo porque é Ano Novo, um bom momento para
se dar as costas ao passado, remoto ou recente, e mais uma
vez tentar recomeçar a vida, senão do zero,
ao menos do dois ou do três.
Há sempre tanto a perdoar e a esquecer (o que vem a
ser o mesmo: o verdadeiro perdão é o perfeito
esquecimento). E nem falo de perdoar os outros, mas a si mesmo.
Quantas culpas e vergonhas arrastamos pela vida afora, lembranças
obsessivamente recalcadas, mas nunca o bastante... Miragens
desse deserto inesgotável, onde memória e imaginação
se confundem e conspiram contra nós. Como ser generoso
assim, sem antes esquecer-se?
"Uma coisa é certa: Deus não quer que
cheguemos a Ele em estado de inocência". Essa frase
não é minha, mas de Henry Miller, em "A
hora dos assassinos". Ninguém escapa ileso desta
vida.
Tudo bem, o Natal pode ser só um cardápio hipercalórico
e o Ano Novo uma tsunami às avessas, feita de gente,
usurpação da festa de Iemanjá pelos fogos
e pelo som. Um duplo sacrilégio, enfim, signo da avassaladora
decadência que nos consome.
Mas virá um dia o Natal sobre a Terra, de que falava Rimbaud em seus versos precisos de menino-vidente, e voltará a festa de Iemanjá a tomar conta das praias com a chama frágil de suas velas tremulando na areia, suas figuras de branco girando ao som dos atabaques e dos cânticos. Ao fim deste ciclo de magnífica idiotia, o singelo, o simples, o fraterno voltarão a sensibilizar o coração dos homens, agora anestesiados pela brutalidade e pelo excesso. "Deus não quer que cheguemos a Ele em estado de inocência".
Mas, até lá, pouco importa: a vida é sozinho e o passado um deserto. E não convém perder-se a vida no deserto. Ano Novo, Vida Nova.