24 de janeiro de 2005
Dos bípedes municipais

O ser humano é um bípede municipal. Não, não... Começa mal a crônica assim. Com essa certeza toda eu só posso de fato afirmar: "Antonio Caetano é um bípede municipal". Entendo aqui por "municipal" alguém destituído da largueza dos mapas, para quem a vida se resume à paisagem confinada na reincidente geografia de seus dias, mas que ele explora até as últimas conseqüências como um bandeirante paulista ávido de esmeraldas. Quando se cansa do lado ímpar da calçada, passa ao lado par e por aí vai seu repertório de artimanhas preguiçosas. Dêem-lhe segurança e conforto e ele estará contente como uma foca de circo.

Reconheço a necessidade e o mérito dos bípedes estaduais, federais, globais e cósmicos. Eu diria mesmo que, em minha municipalidade essencial, tenho pena deles... Para nós, bípedes municipais, qualquer sucesso ou notoriedade, por menor que seja, é um fardo. E não raro é possível escutar entre nós variações do diálogo imaginário que se segue:

- Sabe que Fulano se deu bem na vida? Ele agora é um bípede global...
- Global? Coitado... Mas como foi que isso aconteceu, rapaz?
- Não sei direito.. Parece que ele andou trabalhando muito... Anos e anos seguidos.
- Eu reparava, mas, sabe como é, não gosto de me meter na vida dos outros.
- Nem eu...
- Mas trabalhar daquele jeito... Pra quê?
- Eu sempre o achei meio maluco...
- Eu também...

Alerto ao leitor que as mesmas palavras poderiam estar na boca de bípedes estaduais ou federais, mas aí carregadas de exaltação e inveja que nada têm a ver com o tom de genuína piedade que os bípedes municipais empregam nesses casos.
Mas foram exatamente meus ímpetos municipalescos mais ferozes que me levaram no dia do aniversário da cidade a um lugar que eu não ia há décadas e que por isso mesmo me lembra imediatamente meu pai, porque era um passeio recorrente em nossos fins-de-semana. Não saí com a intenção de visitar o Monumento aos mortos da Segunda Guerra Mundial, mas quando caminhava com a displicência aleatória que os feriados exigem, senti o ímpeto nostálgico de visitar o monumento, íntimo museu da minha própria infância.

O monumento é especialmente bonito em sua simplicidade: parece um navio ancorado no ar. Há algo como uma altiva solidão impregnada nele que é talvez a marca principal do herói.

Fui primeiro ao terraço/tombadilho e depois ao mausoléu onde estão enterrados os restos dos 462 soldados brasileiros que morreram em combate na Itália contra os alemães. O mausoléu fica no subsolo e é todo de pedra, de um despojamento quase rústico que só enfatiza a solenidade do lugar.

Nas lápides brancas estão escritos os nomes, os postos e as datas de nascimento e morte de cada um. A maioria jovens, jovens com menos de 30 anos. A exceção são 13 lápides brancas onde está escrito apenas: "Aqui jaz um herói da FEB. Só Deus sabe o seu nome". É o mais comovente epitáfio que já li.

Ao lado dessas lápides havia outras duas, inteiramente lisas e sem palavras. Soube depois que estão vazias, no aguardo da improvável descoberta dos restos mortais de dois soldados até hoje não encontrados.

Numa das paredes estão incrustados em mármore os nomes dos mortos no afundamento de 31 navios da marinha mercante brasileira pelos submarinos alemães que agiam em nossas costas e que provocaram nossa entrada na guerra.

Estranha guerra essa em que perdemos (e não só nós, brasileiros) mais civis do que soldados. Estranha guerra, a mais cruel e sanguinária de todas - principal espetáculo que a Europa nos ofereceu no século passado.

Também me surpreenderam a força e a clareza narrativa dos belos murais de Anísio Araújo de Medeiros, que eu, guri, "lia" com meu pai ao lado, como se fossem histórias em quadrinhos.

Mas, surpresa mesmo foi descobrir ninguém menos do que Rubem Braga numa foto do museu, logo atrás de um certo major Kuhn, chefe do Estado-Maior do 148ª Divisão da Infantaria alemã, ao se render às tropas brasileiras. Será mesmo Rubem aquele sujeito com ar muito atento de repórter, seríssimo, com um rosto que lembra vagamente Monteiro Lobato? Não sei...

Mas Rubem Braga estava lá, correspondente de guerra pelo Diário Carioca. E nos legou um livro imperdível, carregado dos mais singelo humanismo, comparável em estilo e profundidade aos contos de Isaac Babel, em "A Cavalaria Vermelha". Nem sei se ainda existe esse livro, mas é algo que o próprio Exército deveria reeditar e vender lá mesmo, como parte integrante do Monumento.