14 de fevereiro de 2005
Zaratustra da Mangueira

Todo sujeito tem um repertório de temas, opiniões, histórias e piadas a que recorre quando um silêncio sem intimidade se alonga além da conta. Nada custa mais a uma natureza tímida do que a involuntária convivência silenciosa com alguém pouco conhecido. O silêncio, enfim, é a medida da intimidade. Entre amigos, ele não pesa e pode mesmo ser um refúgio quando nada há a dizer.
Não há palavras diante de um pôr do sol, da morte de uma pessoa amada, do desejo saciado. Para o melhor e para o pior, nunca há palavras. Por isso, são tão necessários os poetas. E, na falta deles, o lugar-comum. A frase-feita. O comentário-padrão.

Como descrever a minuciosa varidade de cores de um poente? Como, aliás, descrever uma cor? Como descrever a singularidade da dor ou do prazer? A vida, onde ela de fato importa, é tecida de gestos, silêncios e frases-feitas. Um abraço, um sorriso, "Meus pêsames", "Lindo!", "Delícia!", um simples olhar. E estamos conversados. Os poemas, se vierem, chegarão depois, como o cafezinho e o cigarro. É, talvez o poema seja a forma mais nobre do silêncio.

Mas falei de repertório de assuntos porque escrevo na quinta-feira de cinzas, dia em que o mundo retoma relutante seu ritmo cotidiano. A sensação que tenho é de que a cidade se finge de morta à espera do fim de semana e se deixará arrastar pelas horas sonsamente até sábado. E, ao contrário do que me querem fazer acreditar os jornais e o raso folclore carioca, não se trata de malandragens de uma alma foliã se guardando para o desfile das campeãs ou um último grito de carnaval. Não - o que a minha intuição me diz é que o carnaval está morto.

Sério... Se um Zaratustra mulato tivesse se isolado por dez anos lá no alto do morro da Mangueira e agora resolvesse descer pra ver como anda a vida aqui no asfalto, ao cruzar com a galera que hoje bate ponto no Buraco Quente, diria a si mesmo, não sem certo júbilo: "Será possível que essa gente ainda não sabe que o carnaval está morto?"

Pois é... Carnaval já não serve nem como tema quando falta assunto e a impressão que me dá é que as pessoas lamentam é não poder emendar logo de uma vez dez dias seguidos de sossego, sem trabalho, em casa, de papo pro ar, com a patroa e as crianças.

Quem sabe de cor um samba-enredo? Aliás, qual a diferença entre um samba-enredo e outro - deste ano ou do ano passado ou do ano que vem? De que ano são essas imagens que se sucedem quase iguais na tela, fazendo jus ao antigo refrão: "O que pinta de novo (em sua enfadonha repetição), pinta na tela da Globo"? E essa quase-nudez que é o avesso de toda intimidade? Essa nudez é como a falta de assunto, nudez de um corpo mercantil, despossuído de alma.

A impressão que me dá é que falta a genuína espontaneidade que é a marca da alegria. Tudo parece comprado: dos seios aos sorrisos. Não sei como é em outras cidades, mas não vejo graça no carnaval do Rio. Aquele, do Sambódromo, está morto. O outro, o das ruas, a obstinada alma foliã do carioca tenta ressuscitar. Mas o caminho é longo e incerto.