Fazia tempo que não brincava assim com a filha. Ele pegara Aline de manhã na casa da mãe. O dia estava lindo e a menina queria ir de novo ao Jardim Zoológico. Alexandre não gostava do passeio. Havia algo de melancólico em ver os animais presos, no cenário mambembe daquelas jaulas que mal fingiam reproduzir o habitat natural deles. O Zoológico (como o circo) provocava nele uma tristeza estranha, que misturava raiva, compaixão e impotência. Raiva da resignada indolência a que os animais pareciam se entregar. Sentia vontade de provocá-los de algum modo até que sua ferocidade se manifestasse em toda a terrível exuberância. Uma vontade insana que deixava exposta sua impotência tão humana: não faria nada, porque não havia nada a fazer. Nada seria capaz de reviver a natureza original daqueles bichos - ao menos, nada que ele pudesse fazer. Dessa sensação de impotência parecia nascer a compaixão que sentia, mais forte que a raiva até. Aqueles animais estavam mortos, haviam sacrificado sua essência e nada além do duvidoso conforto de uma jaula lhes havia sido dado como consolo.
Aline, claro, não percebia nada disso. Admirava-se dos animais, encantada com sua estranheza e indiferença, que ela confundia com o que talvez chamaria de nobreza se já lhe sobrassem palavras. Mas em seus quase cinco anos, a menina era ainda um bichinho maravilhado com o mundo e consigo própria, atenta a tudo e aberta às sensações e sentimentos de um modo tão genuíno que o comovia - não só por conta desse mistério insondável que mal cabia na expressão "minha filha", mas porque ela lhe sinalizava tudo o que perdera ao tornar-se homem, este homem, que só pela perda recomeçava a descobrir-se humano.
A presença da filha fora suficiente para afastar Alexandre
de seus pensamentos mais sombrios e ele pôde circular
pelas alamedas arborizadas do Zoológico com a leveza
que se imagina em alguém tocado pela graça.
De fato, via o mundo com outros olhos, como se possuísse
óculos que lhe intensificassem as cores.
Foi só mais tarde, quando os dois se sentaram para
um sorvete, que lembrou do sonho que tivera. Sim, pela primeira
vez em sua vida sonhara colorido! E, de súbito, o sonho
lhe veio nítido. Não o sonho inteiro, mas o
momento exato em que ele ganhara cor. Ele estava no que lhe
parecia vagamente a sala da casa de sua avó e sobre
a mesa havia um cesto com três maçãs:
uma verde, uma vermelha e uma preta. Ele olhava maravilhado
aquelas maçãs, porque agora, só agora
que enxergava as cores, podia saber que maçã
escolher. Lembrou-se de ter tomado com delicadeza a vermelha
em sua mão e observá-la longamente.
- Papai, você está triste?
- Não, minha filha...
- Então por que você está chorando?
- Papai está chorando, minha filha?
Só então percebeu as lágrimas que corriam
de seus olhos quentes.
- A gente também chora de felicidade, meu amor.
- É, papai? Eu nunca chorei de felicidade...
Entendera o recado do sonho. A maçã preta era
o seu passado - e nada mais podia fazer senão esquecê-lo.
A maçã verde era o futuro, que não existia
ainda senão como promessa. O presente, a maçã
vermelha, era tudo o que de fato possuía. E era preciso
tomá-lo em suas mãos com delicada atenção.
Fazia tempo que não se divertia tanto com sua filha.
Dali seguiram para a Quinta da Boa Vista, o imenso parque
ao lado do Zôo, e em um momento que talvez nenhum dos
dois jamais esquecesse, rolaram abraçados pela grama
com jamais Alexandre pudera fazer com seu pai.