23 de maio de 2005
À espera

Enfim, é maio. O meu maio tão amado. O maio cálido de praias vazias e crepúsculos rosazulilazes que fazem pensar em deuses e anjos debruçados na beirada das raras nuvens que cruzam o céu. Maio que me alimenta a fé quando é impossível a esperança. E nunca em mim houve tão pouca esperança; e nunca em mim foi tão cega a fé - e tão genuína - quanto neste maio que me acalenta com sua brisa em braços de veludo.

Anseio em maio por um milagre, uma dádiva imerecida e inesperada que me redima e torne outro. "Senhor, eu não sou digno que entreis em minha casa, mas dizei uma só palavra e minha alma será salva". É tudo que me lembro da missa: a fé na salvação pela palavra. A palavra bendita. E é assim que me sinto: à espera - neste maio de tardes quase comoventes em sua beleza nobre e distraída como a das crianças a brincar na grama:

(me sinto como alguém que precisa dizer o que veio dizer - mas a voz embarga no momento crucial. E então fica para amanhã, mas amanhã será preciso de novo recomeçar do zero e então quando de novo o momento crucial chegar será já tarde demais e então ficará para depois de amanhã e assim num roda sucessiva de adiamentos, como um pesadelo de onde vão me escapando estas crônicas, mínimos sinais de que ainda estou vivo e resisto no centro do ringue à feroz sucessão de golpes de um adversário que me quer aniquilar, mas estranhamente já nem sinto dor e é quase com se ele apenas me tocasse em câmara lenta, assinalando seu total domínio da situação, o poder imenso que dispõe para acabar comigo, mas não ainda, não agora, com se ele tivesse feito uma aposta exata de que eu cairia em determinado momento de determinado assalto)

É maio, meados de maio e eu passeio pelas ruas do Centro, encontro amigos, converso, sorrio, feliz, mas lá no fundo algo em mim está mudo e ofuscante com a luz refletida em um espelho: é cega a minha fé em que essa mudez seja a vida em mim, persistente feito pedra:

(você me pergunta, querendo me agradar, se eu sou mesmo desse mundo - e eu me perguntava a mesma coisa, mas era outro o tom da minha voz quando eu no centro do ringue apenas encostava a luva nos pontos vitais que minha fraqueza extrema deixava descobertos e me perguntava se eu seria mesmo deste mundo - porque eu não caía, não caía nem mesmo quando eu me tentava derrubar com uma sucessão incessante de golpes, no centro do ringue onde eu enfrentava a mim mesmo, pesadelo cinematográfico em preto e branco)

Me abrigo no silêncio dessas noites de maio, os olhos bem abertos em comunhão com as estrelas. Estranhas visões - não importa se imaginação ou sonho - me freqüentam na semi-escuridão do quarto, retratos de uns medos tão humanos que merecem ser descritos, partilhados. Estou cansado, do Brasil e de mim. Não tenho mais esperança, só fé. Fé em mim. No Brasil, nem isso. Farejo o fim como os animais que pressentem a catástrofe. Como eles, quero fugir. Não vale a pena ficar. Fala do Brasil e de mim este pesadelo de pugilistas idênticos que se defrontam no centro do ringue. Eu joguei a toalha: não vou mais brigar comigo. Mas também não quero ficar aqui. O que vem a seguir é triste demais e indescritível.