5 de dezembro de 2005
Realidade virtual

- É à prova d'água?
- Não... É resistente..
- Isso quer dizer o quê?
- Que ele agüenta uma chuvinha...
- Ah, tá! Quanto é?
- Dez reais...

O reloginho é uma graça: tem alarme, luz colorida, calendácronômetro... Só não é à prova d'água. O que significa que vou perdê-lo assim que esquecer de tirá-lo antes de entrar no chuveiro - o que já me aconteceu duas vezes este ano.

- Tem algum à prova d'água?
- Tem esses aí na frente... O Atlantis. Esse eu garanto.
Eu ri. Porque não dá pra acreditar que um relógio chamado Atlantis seja mesmo à prova d'água. Se a civilização não foi, o que dirá o relógio!
- Quanto é?
Não resisto a perguntar mesmo sabendo que entre mim e o Atlantis se abriu um abismo de desconfiança.
- Trinta e cinco reais.

Preferi ficar com meu reloginho genérico de que não sei nem o nome. E já saí com ele no pulso ostentando ares de quem ganhara a tarde porque tomara umas dessas atitudes decisivas na vida de um homem. Não sei o leitor, mas eu sou dessas pessoas para quem a mais banal das ações - comprar um relógio de dez reais - é cercada de dúvidas, ponderações e receios dignas de um estadista.

Escolher para uns pode ser tudo, menos sinônimo de liberdade. Eu sou um desses. Quero tudo ou nada. Literalmente. Ainda que, cada vez mais, eu prefira nada: quanto menos melhor, tem sido minha máxima.
Quem precisa de algo mais do que um relógio de dez reais para ver as horas até no escuro?

Antevejo um tempo próximo em que a ostentação da riqueza será de extremo mau gosto. Brinco com meus amigos esquerdistas que só eles não percebem que a profecia de Marx já se cumpriu: o mundo capitalista já se proletarizou e caminha célere para o anarquismo. Eles riem. São cegos. A Internet é o óbvio instrumento dessa anarquia que faz de cada cidadão munido de um computador não apenas um fiscal do governo, mas o próprio governo.

Agarrados a modelos do século 19, não percebem que há uma revolução de fato em andamento: os objetos se desmaterializam diante dos nossos olhos atônitos. "Tudo que é sólido desmancha no ar", cito de novo Marx com ironia.

É engraçado que mal nos damos conta que, há pouco mais de duas décadas, "virtual" era sinônimo de "irreal", "potencial", "inexistente". Hoje virtual é uma forma da realidade - cada vez mais presente e a caminho de se tornar a dominante.

Um livro de 800 páginas - um dicionário, por exemplo - que antes reinava ministerial em uma estante, hoje ocupa um grão invisível do disco rígido de um computador e pode, ao mesmo tempo, estar acessível quase que simultaneamente a todos os internautas do mundo que o queiram consultar.

Releia o parágrafo anterior e repare na quantidade de paradigmas quebrados em umas poucas linhas descritivas de uma realidade hoje cotidiana: um dicionário virtual (vale dizer: imaterial) serve a milhões de pessoas.

"Como será o amanhã, responda quem puder", já dizia a letra de um samba-enredo. Duvido que haja alguém que possa.