16 de janeiro de 2006
O circo

Viver aqui e agora. Máxima concentração. Mínimo de palavras. As palavras remetem ao passado ou ao futuro, tão incertos um e outro. O que é o passado? Será que ele existe? Ou apenas subsiste, como a borra do café a marcar o fundo da xícara? E é nessa borra que se quer ler o futuro? Ah, alma charlatã de si mesma...

Palavras, palavras, palavras. Livre-se delas! Fixe o olhar em cada coisa. Não exatamente os olhos, mas o olhar, isto que está bem no meio da testa. Fixe o olhar e tente captar o que há de singular em cada coisa até quase comover-se. Sim, até que o olhar consiga extrair lágrimas desses olhos. Lágrimas que não serão nem de dor nem de alegria. Lágrimas de compaixão. Lágrimas no lugar das palavras: "Eu entendo você."

Não, não haverá lágrimas. Não ainda. Os olhos ainda são como moscas velozes. Não há um olhar, apenas duas moscas verdes e velozes, pousando onde lhes parece mais doce e apetitoso. Dois olhos varejando, volúveis e vorazes. Dois olhos verdes e velozes. Feito moscas.

Livre-se desses olhos, cegos charlatães que não sabem que só vêem a si mesmos!

Palavras e olhos envenenados de desejo. Querer ou desprezar: conspirações sentimentais compensatórias que tecem uma rede de segurança para amparar o salto diário no vazio. Nunca chega a alcançar o trapézio e a evoluir no ar num desenho previsível, mas que nem por isso deixaria de surpreender a platéia ávida de emoção. Pouco importa. Viciado na solitária repetição da queda e no abraço final da rede, atira-se no vazio, acalentando a íntima e secreta esperança de voar um dia, com as asas precárias de Ícaro: olhando do alto, a rede é também o mapa do seu labirinto. Mas com abrir mão da queda, simulacro do vôo, e do narcótico abraço final, que faz aderir o mapa ao corpo como uma segunda pele tatuada?

Voar. Para longe, bem longe. Voar, voar, voar. Fechar os olhos e ver a paisagem imensa, um gozo que dispensa mapas e cálculos. É esse olhar que é preciso pousar sobre cada coisa. Então não haverá mais olhos ou palavras envenenados por velhas emoções congeladas. Ao contrário, o calor desse olhar há de fazer escorrer desses olhos uma água límpida capaz de purificar as palavras e lhes restituir o frescor e o brilho: as palavras voltarão a ser os nomes das coisas.

Mas isto ainda não é agora. Viver aqui e agora. Máxima concentração. Mínimo de palavras. Agora é preciso recusar a queda, a rede, a esperança do vôo e simplesmente alcançar o trapézio e traçar no ar a exata trajetória que o levará ao outro lado. E então descer calmamente até o chão e, para a perplexidade da platéia, viver a emoção pedestre de abandonar o circo.