23 de janeiro de 2006
De abelhas e navios

Ele estava de olhos fechados, um sorriso desenhado nos lábios. Ela não sabia se ele dormia ou apenas descansava, relaxado. Feliz? Ela queria acreditar que sim. "Fizemos amor...", pensou. Achava a expressão engraçada, feminina demais. Não pelo pudor algo ingênuo que se associava à palavra "amor", mas pelo verbo "fazer" que dava à expressão um cunho prático, real, concreto. Ao usá-la, sentia-se como uma daquelas mulheres de sua família que nos dias de festa se juntavam na cozinha para, da mistura de uns poucos ingredientes, dar vida a uma variedade de doces e salgados. Era assim que se sentia "fazendo amor" com aquele homem. Orgulhava-se, admitia para si, com silenciosa imodéstia, do amor bem feito.

Aquele homem era seu, fruto, ainda inacabado talvez, desse amor que faziam. Ela se sentia como se o possuísse e fosse agora dona desse sorriso, dessa carne saciada que jazia ao seu lado na tarde quente. Ela o olhava atenta e terna, respirando devagar para não despertá-lo do sono ou devaneio - não sabia. Mas adivinhava na expressão dele a versão masculina da mesma satisfação que sentia: ele também estava certo de que a possuía.

Mas no linguajar dele, ele não fizera amor; ele transara. Riu. Na boca de um homem a expressão "fazer amor" sempre lhe parecia soar desajeitada como se a associação de amor e sexo fosse algo inconcebível. Ou falso. Talvez nem pensassem em associação, mas em simples substituição de uma palavra pela outra.

Os homens pareciam lidar ainda pior do que as mulheres com a palavra "amor" e por isso talvez não percebessem a potência implícita no verbo fazer. Não, essa talvez fosse mesmo uma dimensão feminina, inacessível aos homens. Certamente por isso preferiam transar.

Enfim, o que para ela era produção, para ele era comércio! Quase não conseguiu conter a gargalhada do que lhe pareceu uma conclusão original e espantosa. Um resumo particular da diferença entre homem e mulher. Olhava para o rosto contentado e podia imaginá-lo perdido em cálculos de quanto dera e quanto recebera naquela transação; do quanto multiplicara o investimento que fizera. Mas não via nisso nenhum traço de mesquinhez. Algo lhe dizia que era assim porque ele era um homem e ponto final.

Seria mesmo assim? Não sabia nem se importava em saber. Apenas se deliciava com a idéia de se imaginar um porto onde navios atracavam para deixar e levar produtos. Ou uma flor diligentemente visitada por uma abelha. Sim, gostava dessa idéia de que nela se produzia algo que era ele quem fazia circular e as imagens que desfilavam em sua mente iam desde a flor até o feto. O filho: obra final e duradoura. Sabia que era cedo para pensar nisso. Sabia que era quase inoportuno pensar nisso. Mas não pensava - era rápido demais: sentia.

Apenas imagens e pensamentos meio soltos que passeavam por sua mente como se ela fosse um domingo ensolarado à beira-mar... Não saberia dizer por quanto tempo ainda velou a imobilidade daquele homem, mas ao perceber que ele despertava, fechou os olhos para fingir que também dormira.