6 de março de 2006
A morte da literatura

Marcelino Rodriguez me enviou um artigo de Rubem Fonseca sobre a morte da literatura. Muito bom o artigo. Está lá no site que Rubem Fonseca divide com outros escritores, o Portal Literal (http://portalliteral.terra.com.br/). Vale a pena a visita. Quem gosta dos contos e romances de Rubem, talvez se surpreenda com o articulista. Despido dos artifícios da carpintaria literária, os artigos deixam à mostra toda a fluidez da prosa de Rubem, o Rubem conversador a que os mais íntimos não se cansam de referir, seduzidos.

No artigo, o escritor ironiza as muitas mortes proclamadas da literatura que, surda aos vaticínios, tem se mantido saudável e viva desde de sempre.

Lá pelo meio do texto, Rubem dá uma virada surpreendente e lança a tese: "Uma coisa talvez esteja acontecendo: a literatura de ficção não acabou, o que está acabando é o leitor. Poderá vir a ocorrer este paradoxo, o leitor acaba mas não o escritor?". E, no fim, conclui: "Os leitores vão acabar? Talvez. Mas os escritores não. (...) O escritor vai resistir."

Bom, pegando carona no texto de Rubem, eu costumo dizer que o escritor escreve para os mortos e os não-nascidos. Seu diálogo com a contemporaneidade é fortuito, contingente, circunstancial. Seus contemporâneos mais o atrapalham do que estimulam. Na melhor das hipóteses, o distraem. Antes de tudo, o escritor inventa a si mesmo com sua literatura, gravíssima missão que nada tem a ver com essa ilusão chamada história, cultura e outras bobagens a que se atêm os homens para acomodar seus rancores e frustrações.

Se for bem sucedido na invenção de si mesmo, o escritor se tornará um clássico e provará dessa imortalidade, fugaz e tangível, que talvez espelhe a outra, presumida e desejada. Porque inventar-se seria dar a si uma alma singular, perfeito acabamento de sucessivas existências que há de habitar outras esferas, segundo prometem todas as religiões.

Esse trabalho tão árduo tem a literatura como instrumento principal e, ao mesmo tempo, como atividade secundária: o escritor, em último caso, poderia contentar-se em apenas imaginar minuciosamente suas tramas e versos, como o feiticeiro aprisionado, do conto de Borges. O escritor pode prescindir da literatura, sem que em nada se altere sua construção.

Mas pode também acontecer o sucesso. Não são poucos os gênios literários que o provaram ainda em vida. O sucesso, longe de ser um mal, pode ser mesmo um bem, alívio material que se traduz em segurança e conforto, dois dos fins mais caros à humanidade. Se passará de alívio a vício que venha a desviar o escritor de sua obra é apenas uma hipótese, o anverso negativo que espreita todo ato humano. Mas nem por isso, estará menos só o escritor com sua obra. Ler e escrever são atos solitários, que exigem isolamento e silêncio, escolhas que suscitam a desconfiança e a antipatia da maioria dos humanos.

O sucesso, enfim, pode ser um problema, mas resulta do acaso. Como disse no início, o maior inimigo do escritor são seus contemporâneos. Porque o ímpeto de inventar-se singular sempre enfrentará a ululante desaprovação do rebanho. O leitor, desde sempre escasso, talvez seja uma entidade em permanente risco de extinção, mas o escritor, esse será sempre a encarnação da eterna vontade de inventar-se.