3 de julho de 2006
A cigana e a alma do Parreira

Vinha atravessando a praça quase vazia no cair da noite fria e chuviscosa, quando uma cigana se aproximou de mim oferecendo a sorte. Machadiana como todas as ciganas, de saião florido, dente de ouro e baralho gasto. - Você lê mesmo o futuro? Então me diz que time o Parreira vai escalar amanhã... Era véspera do jogo entre Brasil e Gana e vivíamos a angústia de saber que seleção afinal iria a campo, ainda mais depois de confirmada a contusão de Robinho. Ela me encarou com um olhar travesso. - Não preciso nem consultar o baralho... Sei de cor o time que vai pela alma do Parreira! O time de amanhã - ela enfatizou - De amanhã!

E antes que eu pudesse sequer duvidar, ela recitou com todas as ênfases e pausas: - Dida, Cafu, Lucio, Juan e Roberto Carlos; Gilberto Silva, Zé Roberto, Juninho e Kaká; Ronaldo e Ronaldinho.

Agradeci seu monumental esforço cívico de atravessar o Atlântico para vasculhar a alma de Parreira, mas justifiquei minha descrença argumentando polidamente que o corpo nem sempre obedece ao que nos vai pela alma. Ela riu o riso amargo das cartomantes: - Você é um falso incrédulo. Você só duvida das coisas em que quer acreditar. - Mas esse nem é o meu time preferido... Queria Cicinho e Gilberto em campo... - Calma, tenha calma... Esse é o time de amanhã. De amanhã! Preste bem atenção, - ela disse, saboreando o próprio silêncio recheado com a minha expectativa. - Roberto Carlos não é Sílvio Caldas, ela disse, com cara de fingida esfinge. E se voltou para a morena bonita que a abordava em busca da consolação das cartas.

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Não importa, leitor, se são verdadeiros a cigana e o diálogo. É da incredulidade que trata a crônica; então é mesmo o caso de incentivar a dúvida. Acontece que, no dia seguinte, Parreira escalou o time dos meus piores sonhos, o do toquinho pro lado e chutão pra frente, em que até o gol é só um adiamento da derrota iminente.

Desmentida estava a cigana, pensará o leitor e pensei eu. Mas, lá pela metade do segundo tempo quem estava em campo era exatamente a seleção que ela predissera. E jogando melhor que a outra, claro... Logo, estávamos certos, eu e a cigana. Ela, porque acertara a escalação - só errara a hora. E eu, por fundar minha desconfiança nas dificuldades do corpo em obedecer aos apelos da alma.

Parreira, como qualquer um, tem alma de torcedor. Mas o homem Parreira é o técnico. Todos torcem, mas a responsabilidade é dele. Ou seja: a vitória é de todos, mas a derrota é só dele. E Copa do Mundo não tem returno. Perdeu? Tente voltar daqui a quatro anos...

Tem se falado muito em jogar bonito ou jogar feio, como se tudo se resumisse em escalar um bando de focas amestradas. Circo não ganha jogo. O que tem faltado ao Brasil - e isso assusta - é velocidade, toque de bola. Eficiência, enfim. A beleza da eficiência e não apenas a beleza da jogada de efeito, que temos de sobra. Alcançar essa síntese, transformar um bando de estrelas numa constelação brilhante em meio a mais cruel de todas as competições, é tarefa de dimensões épicas. Ter tentado é já um mérito.

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Absurdo mesmo é o seguinte: o Brasil é o país com mais títulos mundiais, mais jogadores em campo, mais técnicos atuando, mais torcedores em casa, detentor de quase todos os recordes da competição e do futebol em geral e, no entanto, o excelente site da Fifa (www.fifa.com) - disparado a melhor cobertura da Copa - não tem versão em português! Tem em inglês, francês, alemão e espanhol, mas português que é bom, nada. E olha que o Brasil já é o terceiro ou quarto país em número de internautas conectados. Acorda, Joseph Blatter!