24 de julho de 2006
Um livro por inteiro

Estou lendo um livro fantástico: "Um homem por inteiro". É o segundo romance de Tom Wolfe, publicado em 1998, 11 anos depois do sucesso de "Fogueira de vaidades", sua estréia na ficção. Fui levado a lê-lo por conta de um artigo de Wolfe em resposta às críticas que recebeu de uma espécie de Santíssima Trindade da literatura "oficial" americana: Norman Mailer, John Updike e John Irving. Os três desancaram o livro. O texto, da coletânea de artigos e reportagens "Ficar ou não ficar", é devastador - no mesmo estilo dos excelentes "A palavra pintada" e "Da Bauhaus ao nosso caos" - livros onde ele fundamenta em argumentos tudo o que a maioria já pensou, mas não teve coragem de dizer, sobre a arte e a arquitetura modernas.

Animado pelo artigo, parti em busca do livro e acabei encontrando um exemplar em ótimo estado no "Baratos da Ribeiro", um sebo simpaticíssimo de Copacabana que eu não visitava havia séculos. Procuramos, eu e Gilberto, o atendente, por todo o sebo e nada. De repente, quando o assunto era já outro e eu me conformara em continuar minha busca depois, eis que ele encontra o livro na... vitrine da loja! Foi o primeiro de muitos acasos que têm cercado este livro. Contarei outros.

Comecei a ler o livro logo no caminho de volta para a casa. A primeira impressão, registrada no Lado Blog do Café Impresso, foi positiva, mas não conseguiu superar "Fogueira de vaidades", que já abre a todo vapor. Na verdade, "Um homem por inteiro" pretende construir um painel mais ambicioso. Por isso, começa mais lento, apresentando personagens distantes tanto social como geograficamente, mas que vão convergindo com o acelerar da trama. É uma bola de neve, que vai crescendo, crescendo até envolver o leitor irremediavelmente. Não há como parar de ler e, da metade em diante, o livro torna-se vertiginoso.

Um personagem que parecia secundário ganha uma dimensão repentina que beira o mítico. E aí, revela-se a mão do grande escritor. Depois de uma série de infortúnios, o tal personagem acaba na cadeia e lá o Acaso (que é onde sempre onde sentimos a proximidade de Deus), uma simples troca de livro por conta de uma confusão de títulos, vai desencadear um nova sucessão de fatos, cada vez mais grandiosos que, já posso deduzir, serão decisivos na definição da história.

O rapaz pedira um best-seller tipo "Código da Vinci", cujo título era "O jogo dos estóicos" e recebe, para sua tristeza, uma... coletânea acadêmica de textos estóicos! Mas, ao ler na introdução que um dos autores, Epiteto, fora um prisioneiro na juventude, ele estabelece uma imediata comunicação com o filósofo, que lhe parece falar diretamente ao coração. "Dei-vos uma porção da nossa divindade, uma centelha do nosso próprio fogo, o poder de agir ou não agir, a vontade de obter e a vontade de evitar. Se prestardes atenção nisso, não gemereis, não culpareis homem algum, não bajulareis ninguém". É Zeus falando ao rapaz pela boca de Epiteto. Lindo!

Como foi lindo também descobrir que, em abril, no meu aniversário, eu ganhara de Waldemar, meu queridíssimo amigo e irmão, exatamente uma coletânea de textos estóicos! E lá estavam, no mesmo inglês fluente, as palavras de Epiteto que tanto agitaram o personagem agindo também sobre mim! Obrigado, Wal!

Não quero dar mais detalhes para não estragar o gozo da leitura, mas o efeito da narrativa tem sido surpreendente e emocionante. É nessas horas que percebo que nada se compara à literatura ou tudo mais parece ser dela uma variação: cinema, música, teatro. Tudo, me parece, se reduz à literatura. Mas nada se compara à experiência da palavra agindo diretamente sobre a alma do leitor, numa relação que desafia todas as limitações de tempo e espaço e parece apontar, diretamente e sem equívocos, para outra dimensão do ser - da qual a dita "realidade virtual" é hoje o simulacro mais evidente.