14 de agosto de 2006
As horas

Ouvir bater as horas... "Bater as horas?" - perguntará o leitor mais jovem, acostumado a relógios mudos que nem sequer tic-tac fazem. São relógios digitais, seja na alma, seja na aparência. Digo assim, porque até acontece de termos relógios digitais, desses que funcionam a pilha e não fazem ruído, mas mostram as horas de modo analógico - isto é, que ainda usam ponteiros para marcar as horas. Aliás, acredito que seja por isso que esses relógios são chamados de analógicos: porque a hora é mostrada por analogia à posição dos ponteiros. Nos relógios digitais de corpo e alma, o que é mostrado é a hora, a fria sucessão dos números, sem que se possa ver nenhuma relação entre eles. Já os relógios analógicos nos mostram a passagem do tempo mais até do que as horas.

É algo que se tem de aprender: aprender a "ver as horas". Acho mesmo que eis aí uma experiência, uma das poucas, que ainda é comum a todas as gerações! E, até onde me lembro, não foi uma coisa assim tão fácil isso de "aprender a ver as horas"... (Sem ir muito longe, basta só assinalar que o sistema horário combina dois sistemas, cada um associado a um ponteiro: um sistema duodecimal, de base 12, que marca as horas, e outro sexagesimal, de base 60, que marca os minutos. E a criança tem de aprender isso quando ainda mal domina o sistema decimal...)

Talvez até por isso a gente ainda resista a abandonar os ponteiros do relógio: aprender a espantosa variedade de seus ângulos foi - e continua sendo - um ritual de passagem universal, uma daquelas epifanias que não se esquece nunca.

Enfim, hoje na cama me dei conta que agora quem me "bate as horas" é o movimento dos comerciantes vizinhos abrindo a porta de suas lojas. "Já são oito horas", penso e me levanto, já me sentindo o mais preguiçoso dos seres por ter acordado tão tarde...

Mas, no passado, no tempo em que se havia de dar corda aos relógios ou eles paravam, nós tínhamos em casa um relógio que batia as horas. Ou "dava as horas", como também se dizia, de modo mais elegante e afetuoso. Era uma caixa de madeira de lei torneada, com uns 50 cm de largura, por uns 20 cm de profundidade. Os ponteiros eram esculpidos em metal prateado e protegidos por um visor de vidro redondo. Por dentro, rodas e cilindros dentados giravam em velocidades que variavam segundo o tamanho deles, em sincronia com o movimento dos astros. Dominando o cenário das entranhas, o pêndulo marcava o ritmo com nobilíssima largueza: não o tic-tac histérico dos despertadores, mas um tac-tac espaçado, senhorial, que era a própria imagem do tempo.

A cada quinze minutos, aquele sólido e delicado enigma entoava uma melodia que ia crescendo em complexidade até culminar na batida das horas, uma a uma, bem lentas, para que se pudessem contá-las sem erro.

Lembro de ficar, às vezes, à noite, atento ao bater do relógio, envolto no mistério do tempo que passava. O menino intuía algo de grandioso. "O que é o tempo?" - ele nem se perguntava assim, com tamanha clareza. Talvez porque lhe faltassem palavras; talvez porque não precisasse delas.