28 de agosto de 2006
Noite fria

É um crime você me ligar a essa hora para dizer que está com saudades. Crime cometido em circunstância agravante: faz frio. E como você não é mais primária, ao contrário, trata-se de uma reincidente contumaz, o crime ganha contornos de perversidade.

Mas tampouco eu posso alegar inocência neste caso. O que me leva a concluir que podemos ser igualmente acusados de formação de quadrilha. Afinal, nossa cumplicidade é óbvia e notória. A quase ninguém escapa a satisfação que brilha em nossos olhos e o prazer que ostentamos de flanar juntos por aí, em livrarias, cinemas e cafés - ainda que sejamos discretos, como convém aos criminosos.

(Certamente, o leitor lembrará que estamos no Brasil, onde os criminosos não costumam ser discretos. Na falta de melhor resposta, eu lhe pedirei que, por favor, não me atrapalhe o devaneio.... Falamos de amor e o amor se passa em outro país, ilha idílica e abstrata, e, no entanto, eterna, alheia à contingência vulgar de políticos e criminosos - já mal os distinguimos - gente incapaz de sentimentos elevados).

Mas nada disso redime você do crime de me dizer a esta hora e com este frio - e estando nós dois impossibilitados de sair de casa por conta de nossos inadiáveis e desimportantes afazeres - que está com saudades de mim. Resultado: a noite se tornou mais fria, a distância ficou maior e o tempo até amanhã então, esse parece imenso: dormir já não será repouso, mas um modo ansioso de fazer passar as horas.

(Certamente, o mesmo leitor perguntará porque não nos casamos... Ah, pragmático leitor, as coisas às vezes não acontecem assim, tão lineares e econômicas. Se quer ser prático, lhe faço a vontade, na condição de olharmos o quadro por outro ângulo. Pense que, seguissem a minha vida e a dela o curso que se supõe natural e justo, não haveria esta crônica. Ou haveria outra, cheia de reflexões práticas. Esta, não. O que perderia o mundo com isso? Não sei, não sei... O fato é que bulir com a existência e não-existência das coisas é perigoso. Melhor aceitá-las como são em sua diversidade singular... Enfim, se o argumento é fraco e não lhe basta, sinto muito. Deixe-nos os dois, a mim e a ela, na ilha idílica e retorne o leitor ao mundo real e contingente, o mundo das pessoas práticas, matrimoniais e tributáveis).

O máximo que meu pragmatismo alcança é considerar a meteorologia mais útil do que a astrologia na definição de nossos destinos imediatos. Não sei como estarão amanhã os astros conjurados, mas li que as chances são grandes de o frio continuar. Já o pouco que sei de psicologia me permite afirmar que sua saudade deve permanecer a mesma, se não crescer um pouco, nutrida pela distância. Logo, podemos afirmar sem susto que nada perdemos por esperar - e, quem sabe, até ganhemos alguma intensidade extra.

Então, não será sem otimismo que me recolherei à minha cela para pagar a parte da pena que me cabe nesse caso de mútuas saudades numa noite fria - enquanto aguardo que amanhã, sim, amanhã, me traga a anistia.