4 de setembro de 2006
Advertência

"Os livros de que mais gostas acabarão primeiro". A frase me surge, súbita. De fato, "200 crônicas escolhidas" e "A borboleta amarela", de Rubem Braga, se desfizeram, encardidos e ressecados; "Obras completas", de Fernando Pessoa, perdeu a capa de couro e as páginas de papel arroz estão salpicadas de manchas escuras; "Trópico de Câncer", de Henry Miller, e "Jogo de amarelinha", de Julio Cortázar, dois livros que li mais ou menos na mesma época e me serviram de estímulo e refúgio naqueles tempos obscuros, os dois estão caindo aos pedaços já...

Falo apenas dos que estão agora bem diante dos meus olhos, quase ao alcance das mãos. Mas vou lembrando de outros livros que também estão quase destruídos pelo uso e pelo tempo e que, por isso, foram aposentados das estantes e hoje vivem sossegados em um armário daquele desvão da memória a que ainda chamamos de "quarto de empregada": "Fim de caso", "Os comediantes", "O cônsul honorário", entre outros de Graham Greene; "Sob o vulcão", de Malcom Lowry, "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres", de Clarice Lispector, "Primeiras estórias", de Guimarães Rosa... São tantos...

"Os livros de que mais gostas acabarão primeiro", a frase continua ressoando, bíblica, como que trazida, de repente, por um anjo flamejante, cruel e realista.

"Os livros de que mais gostas acabarão primeiro". Há certamente nisso não sei que lição de vida que me seria muito importante guardar. Mas sua exata profundidade teima em me escapar. Pressinto-lhe a ironia, a aparente contradição que lhe confere ares de paradoxo e de onde se poderia extrair sem dificuldade conclusões untadas de niilismo. Sim, sim, vejo que, lá do fundo da frase, me acena discretíssimo desespero.

Os livros que mais gosto acabarão primeiro, claro, por força de manuseá-los mais, de emprestá-los mais; de levá-los por aí em viagens, passeios, mal-acomodados em bolsas, malas e sacolas; de largá-los nos ladrilhos frios do banheiro ou no chão, ao pé da cama. Sim, e daí?

Porque gosto deles - exatamente porque gosto mais deles - não têm a vida fácil dos livros que jamais serão lidos ou emprestados, aqueles que foram esquecidos antes de sequer serem abertos, que foram comprados pelo impulso vulgar de possuir apenas, mera posse sem desfrute, ter pelo simples prazer de ter, pelo medo de perder, luxo ostentatório do tiranete barroco que sobrevive quase esquecido em alguma ilha da minha alma, mas a quem às vezes ainda satisfaço um capricho.

Afinal, o que de tão absurdo pode haver nisso de os livros que mais gosto se acabarem antes? É uma conseqüência natural da vida dos livros, uma limitação deles que é preciso aceitar como tantas outras perdas, algumas até verdadeiramente irreparáveis.
E nem é assim tão claro que acabem porque os amo mais que os outros. Acabam porque acabam. Acabam porque acabar é próprio de tudo que é mundano. O resto são falsas metafísicas produzidas pela insônia associada ao vício de buscar perplexidade em tudo.

Mas ainda assim, que triste ver se acabarem esses livros tão amados! De uns, haverá certamente novas edições no mercado. De outros, nem isso. Talvez um ou outro exemplar pouco melhor conservado ainda sobreviva em algum sebo, mas são animais em extinção.
"Os livros de que mais gostas acabarão primeiro", repete o anjo realista a advertência em tom de despedida. E se alguma lição há nisso, vai com ele.